Jan Martens, a dança-espectáculo

Coco-Duivenvoorde-624x413

O coreógrafo flamengo Jan Martens chega hoje a Portugal, via Rivoli, num dos melhores e mais bem conseguidos retratos da sociedade do espectáculo, do mediatismo e da velocidade (ia dizer superficialidade mas não há nada de falso neste espectáculo), em que nos transformámos.  The Dog Days Are Over, em apresentação única no Auditório Manoel de Oliveira, é uma surpresa não porque não saibamos como vai terminar, mas porque nos impressionamos que termine mesmo.

Houve outros objectos assim – houve muitos e nada em Jan Martens tem a pretensão de ser original – mas, enquanto dura, é como se víssemos, aí sim pela primeira vez (como é sempre uma primeira vez quando vemos, pela primeira vez, um espectáculo) a retórica dessa sociedade do sucesso, da competição e da afronta. Os franceses Olivier Dubois (Tragedie), Christian Rizzo (D’apres une histoire vraie, que o Rivoli e o Circular apresentaram em Setembro), Mathilde Monnier (Tempo 76, que a Culturgest apresentou), a norte-americana Meg Stuart (Violet, que passou pelo Maria Matos), o brasileiro Marcelo Evelin (Matadouro, apresentado no Maria Matos) ou o colectivo flamengo Schwalbe (Perform on their own, que o Alkantara Festival mostrou no Museu da Electricidade) fizeram-no antes de Martens e, antes deles todos também o fizeram os flamengos, et pour cause, Jan Fabre e Wim Wandekeybus, que é de onde Martens partiu.

O que é novidade em Martens é como o discurso se constrói a partir da denúncia da passividade do espectador, senhor e, ao mesmo tempo, bufão deste jogo dúplice de presa-predador. A exaustão dos bailarinos é tanto mais real quanto real for o modo como reagimos à sua entrega. Há um lado de prazer em cada um dos lados da sala que deve ser traduzido em comprometimento: o dos bailarinos que devem construir uma imagem de invisibilidade pessoal perante a imagem de exposição colectiva; a dos espectadores, que, a partir da mole muda que integram, devem saber integrar, e avaliar, o impacto de tamanho comprometimento nas suas acções quotidianas.

A mecânica de The Dog Days Are Over opera-se a partir desse diálogo surdo, feito de referências e reflexos, onde o corpo dos interpretes é o espelho de uma ausência de compromisso que vá para lá do efeito, o nosso e o deles. A ruptura não virá do cansaço mas da consciência de que alguma alteração se deve produzir se, desse esforço, nada resultar. É uma poderosa metáfora que nos é servida como se nada fosse.

Sim, The Dog Days Are Over também é uma peça irónica, lúdica, e despretensiosa. Mas esse não é o seu ponto de partida, é como lá chegamos que importa. Uns saltam, outros ficam a ver.

 

A Inês Nadais falou hoje com o coreógrafo, num artigo muito elucidativo: Entreter (ou morrer a tentar)

Deixar um comentário

O seu email nunca será publicado ou partilhado.Os campos obrigatórios estão assinalados *

Podes usar estas tags e atributos de HTML:
<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>