Um museu-teatro vivo para o Portugal contemporâneo

Joana Craveiro em Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e esquecidas (fotografia João Tuna)

Joana Craveiro em Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e esquecidas (fotografia João Tuna)

O Estado não tem, mas deveria ter – como tem para o cinema, a literatura ou as artes plásticas e o património – um programa de salvaguarda de obras de teatro e dança que, pela sua importância e potencial histórico, de reflexão sobre a contemporaneidade (ou o que nos trouxe até ela) ou capacidade de fixar um tempo, nos ajudasse a combater a efemeridade que é inerente às artes performativas.

Seriam, como são os filmes no Plano Nacional do Cinema, ou os livros, no Plano Nacional de Cultura – ou as obras de arte (se a, agora infame, colecção da SEC fosse bem gerida) -, obras de referência, de permanente revisitação e estudo, permitindo assim a diferentes públicos o seu acesso.

Mais, deveriam estas obras beneficiar de um programa específico de apoio à sua apresentação nas temporadas dos teatros, programações de festivais ou ciclos paralelos a exposições, garantindo assim não apenas a sua conservação (como acontece com as obras em depósito nos museus), como a sua actualização à luz de novas pesquisas e, ou, adaptações necessárias.

Chamar-se-ia a isso um Plano de Conservação da Memória Efémera, deslocando o teatro e a dança dos arquivos e dos depósitos e activando relações com outras obras criadas entretanto.

Programas assim garantiriam que um espectáculo como Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, que Joana Craveiro criou para o Teatro do Vestido, continuasse a ser apresentado e a suscitar debate, ou emoção, como quando uma sala inteira começa, inusitadamente, a cantar uma canção que achava já esquecida. Mas, quem domina o governo, domina a História e quem domina a educação domina a memória, disse Joana Craveiro na conversa que se seguiu com o público ao espectáculo apresentado a 31 Julho no Negócio, em Lisboa.

Estreado em 2014, depois de quatro anos de pesquisa, integrado na lista de melhores do ano dos jornais PÚBLICO e Expresso, nomeado para melhor criação pela Sociedade Portuguesa de Autores e escolhido como espectáculo de honra pelos espectadores do 32º Festival de Almada, não se limita a ser, como indica o subtítulo, um conjunto de palestras sobre a memória. O que Joana Craveiro faz é fundamental, não apenas para a memória, mas também para o papel que o teatro como ter como escritor da própria História.

A partir das suas dúvidas, a encenadora e actriz, pesquisa os arquivos pessoais dos não-heróis, dos anónimos, dos que não fazem nem ficam na História mas que são a sua força quotidiana e resiliente. É um espectáculo tanto sobre a transmissão da memória quanto é sobre a transmissão do – que é e do que fica – invisível.

Criado no ano em que passaram 40 anos sobre o 25 de Abril, estende-se para lá da efeméride e analisa, à escala da pequena história e do detalhe íntimo, o pormenor que não esquecem nem o corpo nem a mente de quem foi anulado pelo rolo compressor da História. Da pré-revolução ao 25 de Novembro, de um dia-a-dia feito de decisões sem certezas a uma reflexão cheia de dúvidas, Um Museu Vivo… aproxima o que nos fez Portugal contemporâneo do Portugal contemporâneo de hoje, à procura de uma identidade.

Uma canção passada num velho gira-discos, um livro que nunca chegou a ser editado ou tantos outros editados mas que não cabem na bibliografia oficial, um manuscrito perdido num arquivo no estrangeiro, fotografias que não interessariam a mais ninguém, referências que eram só agradecimentos que eram só modos de não deixar cair a memória no esquecimento, detalhes inusitados e relações criadas pelo desconhecimento ou a intuição, objectos que se guardam para que, mesmo longe, escondidos, nunca se esqueçam, palavras que são mais do que símbolos, ruínas que são mais do que ruínas, erros de tipografia que são códigos, palavras-chave que são truques para resistir, ou para actuar, ou para magoar, ferir e matar, lugares que não têm placas que nos lembrem o que ali se passou e placas que estando ali ninguém as vê, prédios novos escavados em lugares de horror e morte, gritos que não se esquecem, mentiras que se contam, para enganar ou para se salvar, um país demasiado pequeno para suportar o silêncio lançado sobre os horrores praticados em nome de um que ia de Minho a Timor, é de tudo isto que se fala, ao longo de uma noite, ao longo de 40 anos, ao longo de quatro anos de pesquisa, de sete palestras, da voz de uma única actriz,  num espectáculo que se constrói a partir do documento mas que vai mais longe do que a ideia de teatro documental.

Existem poucos exemplos, no teatro contemporâneo português, e menos ainda na geração que não o viveu – mas menos ainda vindo de quem o viveu – sobre como lidar com a memória e o passado. Ou seja, existem poucos exemplos de como saber lidar com a memória e como pensar o teatro enquanto espaço evocativo dessa memória. Ou melhor ainda, um espaço onde a evocação resgata a memória do arquivo, tornando-a, ou projectando-a no presente, moldando-o, pensando-o, ajudando a que se construa de forma menos solitária, instantânea, desamparada.

Nos anos mais recentes, e ao lado de Um Museu Vivo… e do trabalho ao qual o Teatro do Vestido se tem dedicado, poderíamos incluir neste percurso, e pelo modo como também parte de memórias pessoais e anónimas, O que é que o teu pai não te contou da guerra? (texto Fernando Giestas, encenação Rogério de Carvalho, criação Amarelo Silvestre, 2014), do mesmo modo que, recuando no tempo, deveríamos incluir Moç+Amor [Elo, Ral, Mur, 1999], que Luís Castro dedicou a Moçambique e ao Portugal da metrópole, embora esta relação com o documento pessoal, tenha uma dimensão poética e nostálgica que imprime à memória outro tipo de relações das quais Um Museu Vivo… é, e felizmente, assumidamente ausente.

Do mesmo modo, partindo do documento e tentando compreender a História, por assim dizer, oficial porque menos anónima, espectáculos como Um dia os réus serão vocês: o julgamento de Álvaro Cunhal (de Joaquim Benite e Rodrigo Francisco, criação Companhia de Teatro de Almada 2013), Diz-lhes que não falarei nem que me matem (texto e encenação Marta Freitas, criação Mundo Razoável, 2012, sobre o antifascista Carlos Costa), e Três dedos abaixo do joelho (texto e encenação Tiago Rodrigues, Mundo Perfeito, 2012, sobre os arquivos da Comissão de Censura Teatral) ajudam a reconstituir a memória, evidenciando os pontos de contacto com a contemporaneidade.

A grande diferença de Um Museu Vivo… reside, precisamente no que a sua estrutura nos vai revelando daquilo que o país aprendeu consigo mesmo, na agrura, e depois na folia, dos dias. As reuniões clandestinas, as prisões injustificadas, o êxodo migratório, a guerra colonial, a noite de 24 para 25 de Abril, os dias seguintes, as operações SAAL, as comissões de trabalhadores, os retornados e os que nunca tendo vivido cá não sabiam o que se chamar, todo o país exposto ao microscópio da memória afectiva, dividido que estava – e estará certamente – entre a compreensão do que se passou e a consciência do que ficou por fazer.

O equilíbrio difícil no qual Um Museu Vivo… se sustenta decorre de uma gestão nada evidente entre os materiais e as narrativas que suscita, potencia ou fundamenta. Talvez porque os materiais usados foram sendo filtrados com vista a uma tese universitária, a narrativa nunca perde um uso útil que se coloca ao serviço de uma dúvida – Quando acabou a revolução? – para pensar como se imagina, desenha, constrói, desmorona e se faz o luto de uma ideia.

Para quem não viveu o período pré e pós revolucionário Um Museu Vivo… faz mais do que anos de livros e teses académicas, filmes e documentários, artigos de jornal e exposições comemorativas, porque expõe, sem impor, um conjunto de preceitos, de elementos e de factos, conduzidos por quem, querendo saber, se coloca do lado de quem também não sabe.

O exercício de cumplicidade entre Joana Craveiro e o público que “chegou agora ou há pouco tempo” é um exercício de partilha e descoberta, enquanto que a relação com “quem estava lá” é um jogo de sinapses que reorganiza o passado, inscrevendo-o no conforto de uma memória colectiva que torna menos sozinha a solidão criada pelos anos que vieram contrariar “a utopia impossível”, para usar a expressão de um estrangeiro que escreveu sobre o 25 de Abril.

A cada passo, dos livros apreendidos à fuga a salto para a Europa, das prisões e torturas à aprendizagem a calar as marcas, das manifestações nas ruas ao que ficou por dizer, da impossibilidade contar porque não havia referências à necessidade de guardar a memória antes que os que a viveram desapareçam, da realidade da guerra nas colónias à retórica da metrólope e as consequências do choque entre um e outro mundos, do Portugal que se quis ao que ficou por fazer, Um Museu Vivo… é o país dos anónimos, dos que não sabiam que a política se pode fazer numa decisão simples como abrir a porta de uma casa para uma reunião, comprar um disco que se tornará senha da revolução, publicar um livro apenas para que não se esqueça, o país dos que aprenderam a dizer que não várias vezes, tantas quantas foram preciso para aprender a resistir um bocadinho mais, mesmo que nada disso fosse fazer política, porque era só viver todos os dias um bocadinho mais mesmo que todos os dias se vivesse um bocadinho menos, até aos dias em que se viveu tudo ao mesmo tempo e depois se ficou com a sensação de que alguma coisa ficou por viver.

 

 

Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, apresentou-se de 26 de Julho a 2 Agosto no Negócio, em Lisboa

Uma criação do Teatro do Vestido, texto e encenação de Joana Craveiro. Fragmentos (video) para ver aqui: https://vimeo.com/103911152

 

 

Texto de Inês Nadais, publicado a 13 Novembro 2014 no ÍPSILON: O passado colectivo jamais será vencido

Crítica de Jorge Louraço Figueira, publicada a 16 Novembro 2014 no PÚBLICO: Riachos, ribeiros e outros afluentes da revolução

 

Outros espectáculos do Teatro do Vestido que partem das memórias pessoais e da memória colectiva do Portugal dos últimos 40 anos:

 

Retornos, exílios e alguns que ficaram (Viseu, 2014)

Museu SAAL – Memórias dos Moradores (Porto, 2015)

 

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