Mónica Garnel é uma encenadora que se faz rara [com excepção de projectos de formação, apenas duas encenações: Entretanto, 2006; Sem título – carvão sobre tela, 2013] mas, a cada vez que emerge, alarga o centro de um teatro que tem no fragmento, no encontro e no risco a sua força. Drive-in, que concebeu para o novo espaço da Casa Conveniente, agora na Zona J, de Chelas, investe, novamente, num teatro de fragmentos onde o encontro entre cinco autores e cinco carros se torna espaço de confronto para quatro espectadores e quatro actores sem reservas.
É mais do que a provocação de um diálogo, mesmo que pareça sempre um mónologo. Drive-In prolongar o universo a que as produções da Casa Conveniente nos foram oferecendo – e quantas vezes não é a memória de Rua de Sentido Único, de Mónica Calle, que nos é devolvida e não apenas quando a encenadora, agora só actriz, nos vem contar a sua história – mas Mónica Garnel reivindica a sua própria autonomia dramatúrgica ao, na provocação de um diálogo, lutar contra o conforto, o domínio e a sedução sugerida pela ideia de intimidade instantânea.
Teatro de perigo, porque sempre em fuga, Drive-in é sobretudo, uma gestão hábil, que gosta de se manter invisível, de tempos, gestos e intenções a partir das palavras de Miguel Castro Caldas, Dulce Maria Cardoso, Luís Mário Lopes, Ricardo Neves-Neves, José Miguel Vitorino e René Vidal. Os autores são aqui o princípio e o fim da viagem feita pelos actores, que encontram um tom que nunca esconde as suas diferenças e, sobretudo, se aproveita delas para compor uma paleta de intenções que corresponderá ao desejo intrínseco que se começa a desenhar com as encenações de Garnel, o de saber como trabalhar a partir da suspensão de uma forma finita de pensar o espaço como extensão do discurso do actor.
Se nas suas duas outras encenações a ideia de fragmento já estava presente – Entretanto era um mónologo que era, sobretudo, um espelho de um outro, feito por Ana Ribeiro; Sem título – carvão sobre tela, sujeitava a mesma actriz, Garnel, à surpresa de ter que construir, com o mesmo texto, de Miguel Castro Caldas, diferentes intenções que pudessem levar ao surgimento, justificado, de um noivo diferente todas as noites – agora o fragmento é, ao mesmo tempo, um mecanismo de ilusão. No mesmo carro, são os espectadores, escolhidos aleatoriamente, que são visitados pelos actores, cada um a apontar para uma outra realidade, criando um outro ponto de fuga que não aquele que se imagina ver a partir do vidro da frente e da noção de viagem. A encenação usa-se dessa possibilidade de confluência de ideias de viagem/fuga para deixar que sejam os textos – da ficcção construída a partir de uma realidade, como com Dulce Maria Cardoso ou da ficção que se quer realidade, como com Ricardo Neves-Neves – a deixar ver o modo como cada actor os quer revelar. A intimidade cria-se pela forma muito pouco artificiosa como Garnel gere as diferentes experiências profissionais e cria uma ideia de cidade a partir das diferentes interpretações.
O fragmento começa, assim pela errância das personagens, presas a uma memória que quer ser resgatada, apagada ou transformada, e que, com o desfiar das diferentes narrativas se vai mostrando como um puzzle a que a inteligência e a discrição da encenação nunca ousam resolver. É como se depois de si própria, da relação com outros actores, e agora com o público, Mónica Garnel alargasse a sua própria noção de fragmento e começasse a desenhar uma dramaturgia sustentada em ligações rizomáticas onde é a memória e a experimentação individual que concebem a dramaturgia interna, invisível e intransmissível de cada um dos espectáculos.
O risco desta proposta evidencia-se, então, pela capacidade de nunca se sentir – para além da evidente necessidade de circulação entre os carros pelos diferentes actores – o corte, o recomeço ou a ruptura. Há, sobretudo, um alargamento das possibilidades de leitura ao mesmo tempo que a tensão se vai transformando em intimidade e uma sexta história se vai construindo: a de quatro desconhecidos num carro que são visitados por cinco histórias contadas em momentos diferentes.
Drive-In, de Mónica Garnel, até 31 Julho, Casa Conveniente/Zona não Vigiada (Chelas)
com: Bruno Kande,Erica Rodrigues, Inês Vaz, Keila Camará, Luana Ferreira, Luís Afonso, Mónica Calle, Monica Garnel e Rene Vidal.
[num carro de luxo: Mónica calle + Dulce maria Cardoso
num carro amolgado: Inês Vaz+ Luís Mário Lopes
numa van:Bruno Candé+ Ricardo Neves Neves
numa carrinha: Daniela, Érica, Keila, Luana+ Miguel Castro Caldas
numa cápsula espacial: Rene Vidal+ José Miguel Vitorino]
Encenação: Mónica Garnel
Assistência de encenação: Sofia Vitoria
Produção: Monica Calle
Assistência de produção: Ana Rocha, Andreia Fumiga e José Miguel Vitorino
Vídeo: Eduardo Breda
Coreografia: Fábio Silva
Figurinos/chapéus: Diamantino de Djaló para Diamond Dye