Carta aberta sobre a austeridade pessoal

Caro Passos Coelho, (ainda) primeiro-ministro,

Escrevo-lhe para dizer – mas não da mesma forma como V. Exa. o diz – que eu sei que a austeridade compensa. Após mais de 7 anos de negociações acabei hoje, oficial e finalmente, de pagar todas as dívidas acumuladas às Finanças. Claro que, no entretanto, vendi a casa que tinha, aluguei outra, saí da cidade e do país, mudei de trabalho e de língua e vivo numa casa mais pequena que aquela que imaginava quando ( nos breves delírios rebeldes juvenis radicais) tinha 20 anos.

Foram anos em que, ao pagar cada prestação, me dava conta de que a máquina fiscal já tinha feito penhoras (e foram 4 – criando desnecessárias relações de dependência e humilhação perante as entidades que me contratavam e que só a boa fé e confiança permitia resolver de forma célere), ou alterado o escalão, ou aumentado o valor da prestação, ou retirado qualquer benefício aos que vivem a recibos verdes, ou, simplesmente, ignorado todo e qualquer pedido de renegociação da dívida baseados na prova de rendimentos baixos. Durante os anos que não podia pagar, a razão não estava numa falta de conhecimento ou no esquecimento das minhas obrigações. É que tinha duas opções: ou pagava ou comia. Como diz a canção do Sérgio Godinho: “tem o seu preço, não ter um endereço”.

E como foram tantas as vezes em que tive que pagar para trabalhar, não me arrependo. Sobretudo porque a verdade é que grande parte das dívidas foram acumuladas no período em que dirigi uma revista, que foi a forma que encontrei para poder ter um rendimento (e gerar riqueza para o país, e poder contratar pessoas e pagar-lhes, por exemplo, ao contrário das suas empresas-fantasma mantidas a subsídios estranhamente alcançados) e outra (não menor) de multas, coimas e alterações provocadas pela arbitrariedade do sistema.

Porque não é disso que se trata. Trata-se sim de lhe mostrar que me recuso a aceitar as suas desculpas, e as suas regras discricionárias, e que se é verdade que a honra dos compromissos faz parte da ética individual pela qual nos devemos bater, não aceito a ideia feita de que vivi os anos anteriores acima das minhas possibilidades.

A máquina que rege o sistema no qual vivemos é ausente de uma lógica atenta às condições reais da população. Uma população que, deixe-me lembrar-lhe, não vive desafogada nem pode escolher se pode ou não pagar e, por isso mesmo, lhe permite a si ser doentiamente desatento (para não dizer cego) à necessidade de adequação permanente dos meios para atingir os fins.

Dir-me-á que as máquinas são assim mesmo e que um sistema não pode ser feito de excepções mas de regras comuns. Pois eu digo-lhe que tendo vivido sob as regras dessa máquina e tendo-me hoje libertado delas, não me arrependo mas também não soçobro. Ter saído do país decorre mais de uma reflexão pessoal sobre o meu futuro do que uma solução economicamente mais viável. Não lhe dou o gosto de me ter como número dos que tiveram que sair porque, de facto, não tinham outra opção. Claro que o seu governo não ajudou (como o anterior também não, aliás). Mas eu nunca achei que era menos europeu por viver em Portugal como não me considero menos português por ter alargado o meu território de acção. Faço hoje mais por Portugal em Paris do que se continuasse em Lisboa. E isso não se deve a si, nem ao seu governo, pelo contrário.

Porque de uma coisa pode ter a certeza: o Portugal que defende não é o Portugal que eu quero. E é por isso que quando eu digo que a austeridade compensa, não o digo da mesma forma que V. Exa. o diz. Eu quando falo de austeridade, uso este termo para simplificar e criar um impacto mediático – e metafórico – para que possa compreender o que foram os últimos anos onde só a imaginação, engenharia financeira e uma rede de afectos conseguiram resolver um problema sério. Mas não fugi nem disse que me tinha esquecido ou fui pagar à pressa, provando que, afinal, o poderia ter feito antes mas achava que ninguém ia notar.

A austeridade é, portanto, a compreensão do esforço e não a imposição de um espartilho. Há uma diferença entre a frugalidade e a austeridade, do mesmo modo que há uma diferença entre a dignidade e a legitimidade. A fuga aos impostos – que é o que o sr. fez e o que fazem os seus amigos – não é o mesmo que o atraso nos pagamentos das prestações para se poder continuar a ter um nível de vida digno. E é por isso que é legítimo, quando há necessidade de defender a sua dignidade, de atrasar um pagamento, mesmo que isso implique multas e coimas.

Foram muitas multas e coimas nos últimos anos, mas muitas vezes foi a única solução. E hoje acabou. Graças à sua máquina impiedosa, é certo, mas sobretudo graças a uma resiliência aprendida desde cedo onde só aceitamos ser vergados por quem o merece. E o senhor não merece. Nem nos últimos anos, nem hoje, nem em Outubro quando (espero) perder as eleições.

Agora já só me faltam pagar 1900€ à Segurança Social, pelas mesmas razões. Mas não me vai ouvir dizer que pensava que eram facultativas. Facultativa foi a escolha entre comer e pagar. Facultativa é a escolha entre antecipar pagamentos, usando o mesmo valor que guardava para pagar às Finanças e assim acabar mais depressa, ou manter o acordo mensal que demoraria 38 meses a cumprir. Facultativa é, por fim, a possibilidade de o manter como primeiro-ministro depois de todas as mentiras, trapaças, falsidades, arbitrariedades, má-fé, falta de coluna vertebral, de seriedade, de estratégia, de ausência de promoção da meritocracia e, sobretudo, uma falta de visão para o país.

No dia em que acabo de pagar o que devia às Finanças, o mesmo dia em que me seria fácil estar do lado dos que querem obrigar os gregos a vergar, digo-lhe que não se pedem soluções sem medidas estruturais, sem querer de facto mudar em nome das pessoas e para as pessoas. Os anos de vícios criados por governos sem coragem para protagonizar as mudanças necessárias levaram-nos aqui, a esta Europa onde uns contam mais do que outros. E o senhor, nos últimos anos, rebaixou-nos de tal forma que vão ser necessários mais anos a reconstruir (mas não esquecer) aquilo que, tão facilmente, V. Exa. deixou que destruíssem, quando fingia estar a resolver. Uma coisa é certa: quando em Outubro se for embora, quem a seguir vier será (espero) muito mais escrutinado e encontrará uma população mais resistente, menos crente e muito menos disposta a ser convencida com a retórica vã que o levou a São Bento. Esse mérito ninguém lho tirará. E não é pouco. E é de graça.

Não se esqueça: a máquina, que não é social-democrata nem socialista, a mesma máquina que me diz que não pode ser humanista, existe porque existem pessoas. Que se tenha esquecido disso também é facultativo mas é, sobretudo, revelador da falta de carácter que o constitui. E, pelo menos de mim, a máquina não vai poder dizer que sou devedor.

Cumprimentos,
Tiago Bartolomeu Costa

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