Os espectadores são seres esquisitos. São seres que acreditam. São pessoas que acham que se passarem muitas horas sentados nas cadeiras dos teatros que isso lhes muda a vida. Os espectadores têm sempre razão porque as razões que os levam a achar que estão certos, são mais certas do que as razões que nos levam a nós, que estamos do outro lado, a fazer o que eles querem ver. Por isso, quando um espectador deixa de vir é menos um olhar com o qual nos confrontamos. É menos uma voz, um discurso, uma forma de pensar. É muito mais do que um bilhete vendido, um leitor, um aplauso. Às vezes os espectadores deixam de vir e às vezes os espectadores morrem.
Não lhes sabemos o nome mas sabemos-lhe de cor a cara. Não lhes sabemos a biografia mas sabemos bem em que espectáculos os encontramos, em que salas, em que data. Às vezes somos capazes de construir essa biografia que pode muito bem ser o número de vezes em que aconteceu ficarmos sentados lado a lado dessa pessoa, ou esperado ao mesmo tempo pelo último bilhete ou adivinhado que a íamos encontrar naquele dia, aquela hora, naquela sala, para aquele espectáculo.
Os espectadores são sempre silenciosos mesmo quando aplaudem, mesmo quando riem, mesmo quando protestam. Os espectadores são, realmente, a última das fronteiras a conquistar porque são a única coisa que, afinal, nunca se possui. É um processo de conquista e de sedução permanente. É uma espécie de crença. Achamos que falamos, que escrevemos, que pensamos para e com eles mas na verdade sabemos sempre muito menos do que eles sabem de nós porque, afinal, são eles que nos dizem que vale a pena continuar a fazer, a pensar, a escrever, a dizer. Porque eles voltam e nós através deles.
Por isso, quando morre um espectador, não é só um lugar que fica por ocupar. É uma história, uma memória, uma forma de construir uma comunidade que assim vai perdendo as suas fronteiras e ficando, a cada vez, mais pequena. É como se, num palco, deixássemos de ver o que lá está iluminado. Sabemos que ficou qualquer coisa mas deixamos de saber identificar o quê.
Às vezes morre um espectador do qual não sabíamos o nome e isso deixa-nos um pouco sem chão. Porque era um espectador da mesma idade, com as mesmas referências, nos mesmos lugares mas em sítios diferentes. Tudo isto podia ser imaginado e, no entanto, mesmo sem biografia, houve um espectador do qual não sabíamos nada que levou com ele uma parte da nossa própria história de ver, fazer e pensar espectáculos.
A morte de Nuno Machado, do qual durante anos nem o nome soube, apenas o rosto e a silhueta reconhecível, é algo de profundamente perturbador. É-o não apenas por aproximação geracional mas porque há anónimos que nos são familiares. Anónimos que podiam contar as mesmas histórias que nós mas de outra forma porque o que contam, essas outras outras histórias, também podem ser as nossas.
A morte de Nuno Machado, por circunstâncias que só a ele lhe dizem respeito, é também a morte das pequenas cumplicidades que se fazem pela partilha simples de coisas pequenas, invisíveis, de laços que nos unem a todos sabe-se lá por que mistério. É a morte de um espectador anónimo. A morte de um espectador com um nome. A morte, afinal, de uma história comum. E a morte de alguém sobre o qual não sabíamos nada porque nunca lhe perguntamos o nome – da mesma forma que ele nunca perguntou a razão pela qual se faziam certas escolhas, como se acreditasse (e nós com ele) que é a imaginação que nos sustenta – é o avanço do vazio que nos engolirá um dia. Só gostávamos que não chegasse tão depressa para alguns de nós.
”
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.”
“Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.” RIP Nuno Machado.
RIP
Este espectador, passou por mim várias vezes na escola. Simpático, sorridente e sempre bem-disposto.
Ainda não caí em mim, como a vida é insignificante!Quem me dera poder ter ajudado, quem me dera poder ter feito alguma coisa. Mas agora acabou, é tarde demais e a vida continua, um pouco mais vazia de afectos e sorrisos e mais cheia de dor e interrogações.
Nuno, lamento tanto e a única esperança que tenho é a de que estejas finalmente em paz. Que as memórias e sorrisos que partilhaste com aqueles que contracenaram contigo neste teatro que é a vida te acompanhem e te tragam felicidade, onde quer que estejas.
Um abraço forte à família e amigos.
Até um dia setor
Como diz…”…/…A realidade que é ficcionada e a ficção que é realista.” O desaparecimento do Nuno sem um sequer pré aviso, é quase isto.
O Faial chora a partida de um ilhéu, com um coração cheio de mundo!!
Abraço