Ana Bola sem filtro: O que nos sobra servido numa bandeja de prata

 

Ana Bola sem Filtro (fotografia José Frade/São Luiz - Teatro Municipal)

Ana Bola sem Filtro (fotografia José Frade/São Luiz – Teatro Municipal)

Ana Bola tem 62 anos. Na simulação daquela que será a sua reforma, após quarenta anos de carreira, terá direito a pouco mais de 300 euros. Predispor-se a ir a uma audição para um programa de televisão não é, por isso, uma graça. É uma situação que decorre de uma condição estrutural e de um contexto social que a actriz e humorista disseca transformando a realidade numa consequência natural para o enfrentar dos dias. Toma-o como desafio e, através dele, devolve ao espelho uma resiliência comovente.

Ana Bola sem filtro, que levou 3 mil pessoas à sala-estúdio Mário Viegas, do São Luiz – Teatro Municipal, é um duro exercício de reconstrução do quotidiano numa sociedade que lida mal com o envelhecimento e prefere a distância ao confronto. A mesma sociedade que entende os artistas como elementos dispensáveis após cumprida a tarefa de a entreter, e os mesmos artistas que aceitam as condições que lhes dizem serem as possíveis. Ana Bola sem filtro é, por detrás de todas as anedotas que Ana Bola possa criar para reconstruir esse quotidiano, um jogo de disfarces que coloca o dedo nas várias feridas abertas entre o papel social e a economia real.

O que é desarmante é o modo inteligentemente cómico – porque profundamente trágico – com que o humor se transforma num questionamento dos limites para a resiliência humana. A vantagem que Ana Bola terá relativamente a todos os outros será, precisamente, a capacidade de transformar essa resiliência numa espécie de deriva dramatúrgica que parece ficcional e, através da ficção, questionar a própria realidade.

Mas o que dá a Ana Bola sem filtro uma estrutura que se aproxima da auto-ficção, tem menos a ver com uma identificação com a actriz e autora, e mais com um aproveitamento tácito e inteligente dessa cumplicidade evidente com o público e o modo como a actriz vai deixando de lado as personagens que vai fazendo na televisão para traçar a fronteira que a separa da efemeridade humorística dessas mesmas personagens. A possibilidade de fazer humor a partir de situações reais é o modo encontrado para denunciar uma sociedade transformada em programa de televisão, com risos controlados, banalidades transformadas em grandes feitos, e dramas (económicos, sociais, políticos) em narrativas que nos parecem ficcionais.

As histórias que conta, pela sua proximidade e imediatez – a relação com os pais, as soluções inventivas para sair de uma situação de precariedade, os exemplos retirados das notícias e dos escândalos políticos, por exemplo –, mostram como a derrota pode ser transformada pelo humor, mas mostram sobretudo como o humor é uma arma de denúncia. Perante o pequeno poder anónimo – corajosa metáfora para o Portugal contemporâneo, onde, tal como nos reality-shows uma voz grave dita ordens sem nunca se comprometer – Ana Bola passa em revista não necessariamente os 40 anos de carreira mas a possibilidade concreta de esse tempo poder não significar nada. Votada pelo público, aplaudida porque ali está pago para aplaudir, o que diz, o que faz rir, aquilo que se consegue disfarçar é, também, um espelho sobre uma sociedade que deixou de viver para passar a jogar sobre o destino dos outros, à distância de um botão.

Assim, mesmo que nunca pareça, aquilo a que Ana Bola se sujeita é de uma violência tremenda. A exposição de um quotidiano não se faz sem custos, ainda que disfarçado pela derrisão do texto, a empatia com o público e um humor que tenta resgatar uma liberdade desse contexto de sufoco. Mas o que se vai relevando, camada depois de camada de uma interpretação inebriante, é uma montagem artificiosa de como pode uma pessoa que se vê confundida com a sua própria personagem pública, reclamar para si um espaço identitário que seja, também ele, veículo de projecção de questões semelhantes que possam ser colocadas pelos espectadores. Por exemplo, aqueles que se veêm sem emprego ao fim de uma vida de trabalho. Ou aqueles outros que confundem a distância que vai entre o que se lê nas revistas e se vê na televisão e as vidas das pessoas sobre as quais se lê nas revistas e se vê nas televisões.  Ou ainda aqueles que se riem da caveira, como Hamlet, esquecendo-se que, mais tarde, serão a própria caveira. No palco a caveira é uma cabeça de porco servida numa bandeja de prata, como o último sacrifício para prazer dos comensais. Não é um detalhe.

 

Ana Bola sem filtro apresentou-se no São Luiz – Teatro Municipal entre 8 Novembro a 21 Dezembro 2014.

 

 

 

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