Não é importante perceber se António e Cleópatra, de Tiago Rodrigues, é uma peça onde o movimento dá origem à palavra ou se é através dela que o texto surge. Na verdade, um e outro, movimento e palavra, são elementos essencialmente evocativos num espectáculo que se furta a uma narrativa linear e se diverte a brincar com a memória que o próprio corpo tem do que a partir dele se pode expressar. Que se diverte, inclusivamente, a brincar com a ideia de teatro enquanto espaço de construção do real.
A partir do texto de William Shakespeare, texto dito imperfeito, feito de imagens, crente num teatro de efeito, de ilusão, onde a palavra constrói um espaço a partir da sua simples evocação, e onde as personagens existem num travestismo político, social, sexual e emocional, Tiago Rodrigues olha para dois corpos e pergunta que espaço pode ainda existir no desejo de ocupação e de territorialização do outro. Esse outro é, ao mesmo tempo, homem e mulher, escravo/a e senhor/a, Roma e Egipto, amor e morte, desejo e traição. No diálogo, que é um vai-e-vem porque é uma disputa entre dois corpos, o que vai ficando é o eco de um profundo desejo de pertença num texto que existe como hipótese evocativa de um sentido de pertença. É uma estratégia que é, também, uma ética emocional que dá ao texto a sua dimensão trágica.
O que talvez seja curioso de observar é como este António e Cleópatra, afastando-se de Shakespeare – e de Vidas Paralelas, de Plutarco, onde Shakespeare se terá inspirado – rasga um espaço-tempo que se socorre do nossa inevitável projecção nos corpos de dois amantes que são, ao mesmo tempo, projecções construídas de si mesmos.
Não é a primeira vez que tal acontece com, e no teatro de Tiago Rodrigues. De cada vez que o seu teatro se confrontou com mecanismos narrativos e linguísticos outros que não os dos teatro – como aconteceu com a curta-metragem Coro dos Amantes, de Tiago Guedes (2014), a partir de um texto seu, na apropriação do imaginário de Flaubert para conseguir traduzir Madame Bovary (2014), na cumplicidade pedida aos participantes de By Heart (2013) ou os relatórios do Comité de Censura do Teatro em Três dedos abaixo do Joelho (2012) – o que daí surgiu, obrigou a um exercício de depuração da carga simbólica da palavra. O verbo torna-se acção através da sua enunciação e essa dimensão evocativa transformou um teatro de intenções num teatro de acções.
É por entender que António é já Cleópatra e que Cleópatra é já António, que Tiago Rodrigues tenta perceber o mito e permite construir o jogo entre os dois amantes através de olhares que são, também, os olhares que os dois intérpretes, Sofia Dias e Vitor Roriz, lançam entre si e para os espectadores. O jogo entre os dois é, também, um jogo de actores face a uma narrativa, a um desafio, a um corpo estranho (o texto) que precisa ser habitado para poder ser superado.
Os dois bailarinos, aqui actores mas actores conscientes de que o corpo não é o primeiro dos recursos mas antes uma consequência de uma ideia, emprestam a sua extraordinária capacidade de transformarem o gesto em palavra e a imagem em acção a uma narrativa que não se impede de cruzar o que é mito e o que é história. Revelam, assim, o quanto António e Cleópatra é um longo poema posto ao serviço de dois intérpretes que desaparecem dentro dele como nunca antes haviam feito. Aliás, um dos grandes problemas de Durações de um minuto (de Clara Andermatt e Martins, São Luiz, 2010) e at most mere minimum (de Sofia Dias /Vitor Roriz e Carla Maciel/Gonçalo Waddington, Culturgest, 2012) era precisamente o lugar a atribuir – e o papel a desempenhar – a dois interpretes que, trabalhando juntos, não se definem a partir da unidade mas sim da complementaridade. Veja-se Um gesto que não passa de uma ameaça (2011), ou antes desse Again from the beginning (2008/09) e compreende-se que o trabalho da dupla não se define a partir da acumulação de modos diferentes de compor o movimento – Dias mais expansiva, Roriz mais íntimo, por exemplo -, mas sim a partir de modos de construção e desmontagens de uma mesma ideia que se antagonizam a partir da própria estrutura dramatúrgica.
Aqui, o que a partir das ideias de representação do que possa ser António e do que possa ser Cleópatra – da ideia que têm um do outro e do modo como a destroem – o que sucede paradoxal. A exposição torna-se íntima, quase secreto e interdita porque o que conseguem (re)construir, sustenta-se no confronto do movimento com a palavra, numa tentativa constante de uma evocação de um mesmo corpo representado por dois corpos e de uma identidade dividida em duas identidades. António é Cleópatra, como o Egipto é Roma, os olhos de um a verem o mundo do outro, e os dois corpos a serem, ao mesmo tempo, o interior e o exterior de uma mesma personalidade. Sofia Dias e Vitor Roriz são – sem nunca serem completamente o outro, a distância necessária para questionar o que pode ser essa entrega. Ora, o grande trunfo do texto está em deixar espaço para que seja com base na recusa da linearidade narrativa que essa mesma narrativa – ou seja, a utopia – se desmonta. O que a direcção de Tiago Rodrigues compreende é que a gestão dos corpos no espaço (cenografia de Ângela Rocha; desenho de luz de Nuno Meira) vai buscando nas margens da memória – do corpo, do eco da palavra, no que resta de movimento, no que não se agarra, como a sombra – , a margem de que os intérpretes precisam para habitarem o texto.
António e Cleópatra apresentou-se de 5 a 8 Dezembro no Centro Cultural de Belém, Lisboa