Tânia Carvalho: A Tecedura do Caos ou a arte do desaparecimento

 

Weaving Chaos

Será preciso regressar a Uma lentidão que parece uma velocidade (2007), para encontrar um paralelo no percurso de Tânia Carvalho a A Tecedura do Caos, a sua mais recente criação, que foi apresentada no Centre Pompidou entre 24 e 26 Setembro em Paris, em colaboração com o Théâtre de la Ville, depois de ter estreado na Biennale de la Danse, em Lyon, no início do mês, e que fará a sua estreia em Portugal em Fevereiro, no Teatro Maria Matos, antes de seguir para uma digressão no âmbito da rede 5 Sentidos.

Nunca, como até agora, e desde esse solo delicadíssimo, o corpo se havia posto tão em causa através de uma suspensão do movimento que não fosse, em si mesmo, uma imagem final. Percebe-se agora com A Tecedura do Caos, que o que perturbava em Orquéstica (2006) e Icosahedron (2011) – as duas outras peças criadas para grandes grupos (em 2003 houve O melhor delas todas, para 7 bailarinas mas o movimento de Tânia Carvalho, visto agora, respondia a outros princípios, digamos, mais porosos e menos afirmativos) -, era precisamente o modo como, na gestão de uma massa, a coreógrafa ensaiava modos de a construir como um todo a partir de exposições diferentes, como se tratasse cada corpo como uma fotografia numa imensa paisagem. Mas por mais dedicadas que fossem as imagens criadas pela fluidez do movimento, parecia sempre haver uma ausência que transformava a intensidade desse movimento num apaziguamento visual.

A Tecedura do Caos vai buscar elementos constitutivos de solos como Uma Lentidão... e Síncopa (2013) e experimenta num colectivo de 12 intérpretes a relação entre uma imagem e o impacto que pode produzir, aproveitando-se do vórtice coreográfico como uma imensa máquina de manipulação visual. Precisamente porque Tânia Carvalho compreende que é no desejo de permanente construção que o movimento ganha amplitude, esta nova coreografia estrutura-se a partir de uma coreografia onde os bailarinos mergulham como se atraídos por esse imenso vórtice.

Ao rejeitar violentamente, e como sempre, o corpo individual como objecto finito, Tânia Carvalho explora as cambiantes propostas pela acumulação dos diferentes corpos, sabendo integrá-los como parte de um mesmo movimento – como acontecia em De mim não posso fugir, paciência! (2008) – mas sobretudo nunca esquecendo o potencial de transformação que cada corpo carrega, tal como em Uma lentidão que parece uma velocidade. Será isso que significa o isolamento a que os vários corpos se vão sujeitando, no meio de uma massa em permanente mutação, expondo uma força que se insurge contra a finitude de um movimento.

Ao contrário do que acontecia, por exemplo, em De mim não posso fugir, paciência! (2008), 27 Ossos (2012) e O reverso das palavras (2013) – criações com grupos mais reduzidos, entre os 3 e os 5 intérpretes – , as peças que Tânia Carvalho construía para grupos maiores – 8 no caso de Orquéstica; 20 no caso de Icosahedron – pareciam nunca rejeitar a forma, fixando um movimento que ainda que pudesse ser interessante pela sua dissincronia, nunca assumia a sua condição de ponto de fuga.

Mas, ao contrário do que acontecia anteriormente, há uma unidade em A Tecedura do Caos que até agora não tinha sido possível prever, porque havia a tendência  a interpretar essa dissincronia como um efeito visual que alimentava – quando não mesmo estruturava – o imaginário coreográfico de Tânia Carvalho. Basta lembrar como em 27 Ossos havia uma presença que se pressentia mas nunca era vista, para compreender que, ao longo dos anos, a ideia de desaparecimento esteve sempre presente no modo como Tânia Carvalho lançava os corpos uns contra os outros. O caso mais extremo para entender esse desejo de desaparecimento talvez seja a série de projectos construídos para, ou com, alguém: Movimentos Diferentes para Pessoas Diferentes (2007-2009), Der Man ist Verruck (2009), Olhos Caídos (2010), Como é que vou fazer isto? (2013). E, no entanto – como veríamos em Síncopa – de cada vez que se apresentava a solo, o seu movimento desenhava uma identidade a partir do potencial de multiplicação a que se sujeitava. Não era o corpo do outro que interessava, era um corpo noutro.

Tânia Carvalho mostrou sempre uma capacidade de transformação do movimento em algo que existia a partir de umaintensa possibilidade de construção, como se o corpo fosse um constante ponto de fuga e, na multiplicação de corpos, o movimento – como vimos em De mim não posso fugir, paciência! – fosse aquilo de mais próximo existe desse desejo de escape. Ora, e precisamente porque a singularidade do movimento de Tânia Carvalho residiu sempre no modo como a coreógrafa entende o movimento como uma imagem que rejeita a forma e a sua fixação – tal como acontecia, precisamente, nesse em Uma Lentidão... – os corpos de A Tecedura do Caos fixam-se apenas numa ideia: a recusa de uma imagem finita. O que constroem com isso é o retomar viagem no ponto onde Uma Lentidão… nos havia deixado.

Aí, o corpo recusava admitir a sua solidão através de uma relação de manipulação de um piano que servia para que se desmultiplicasse em diálogos sobrepostos que ampliavam essa presença, ao ponto de transformarem o movimento num caleidoscópio sensitivo e íntimo. Mais do que uma coreografia, o que resultava era uma exposição descarnada do corpo como entidade viva.

Agora, a partir de uma leitura de A Odisseia, a coreógrafa entende que o texto de Homero existe como um modo para pensar o lugar do corpo como território de acção e de transformação, permitindo-se a uma construção que explora os contributos de cada um dos bailarinos e, por uma vez, assume a condição de corpo de baile que as suas peças de grupo sempre contiveram.

O que parece ser inédito no trabalho de Tânia Carvalho é a aparente noção de simplicidade com que, ao invés de criar uma sobreposição de imagens e prolongar essa paisagem, a coreógrafa a vai limitando a um conjunto de frases que se vão repetindo e fortalecendo. Muito contribuindo para isso a unidade proposta pela música e efeitos sonoros (Ulrich Estreich), desenho de luz (Zeca Iglésias) e figurinos (Aleksandar Protic), o movimento vai-se organizando – e já não apenas construindo, ou encontrando o seu lugar – até ponto em que imagem do corpo individual se funde numa imagem colectiva e, o que parecia propor uma paisagem abstracta, parece ser, afinal, um profundo desejo de recomeço.

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