Robin Williams: A máscara do actor

Robin Williams, cómico para os tempos cínicos, morreu. O seu percurso, feito pelas nossas gargalhas, é um exercício de disfarce e metamorfose à beira do precipício. Uma biografia fílmica que é, afinal, um imenso desejo de pertença

 

Robin Williams (1951-2014)

Robin Williams (1951-2014)

No primeiro episódio da série The Crazy Ones, a última que interpretou, Robin Williams olhava para a parede onde estava grafitada uma imagem sua e perguntava-se se ainda era aquele homem divertido, capaz de fazer o que dele esperavam sem falhar. Perguntava-se se o charme era um último recurso ou uma arma secreta. E depois atirava à sua própria cara, imóvel de vinte anos, que o que dois casamentos falhados e um passado confuso não tinham sido capazes de abalar, também não era um dia mau que o iria conseguir.

A série viria a ser cancelada neste final de primavera, ao fim de pouco mais de vinte episódios, mas a persona de Robin Williams, publicitário que procurava manter, a qualquer custo mas não sem uma boa gargalhada inteligente, a sua própria agência, era alguém à procura de quem o seguisse. Não a ele, mas depois dele.

Em 1978, um perfil do actor publicado no Los Angeles Times, na surpresa que fora a sua estreia na série Happy Days, descrevia a sua mente como “um caixote do lixo cósmico onde filmes antigos colidem com comida rápida e um velho impaciente alimenta pombos a metadona”. Parodiando Shakespeare, continuava o artigo, entretanto recuperado, Williams perguntava-se se seria “mais nobre lutar contra o deus Nielsen ou pegar no dinheiro e comprar uma casa em Malibu’”. O artigo intitulava-se “Comédia para tempos cínicos”, e a questão está em saber se esses tempos continuam cínicos ou o cinismo de hoje é já outro. Nas homenagens públicas que vão sendo divulgadas, a memória de Williams pertence já a um tempo em que o humor não se regia por regras de comportamento nem por graças efémeras. O tempo e a inteligência na gestão desse tempo, o cómico e aquele onde se vive, eram ferramentas para uma mestria que, ao longo de décadas, alimentou uma relação de proximidade, mesmo que nos últimos anos Williams fosse como um daqueles cinemas de quem todos gostamos mas já lá não vamos.

Talvez seja uma questão geracional mas ter crescido com Robin Williams impede-nos de reconhecer nos herdeiros com que o cinema norte-americano nos deixou (Adam Sandler, Chris Rock, o cinema dos irmãos Farrely e a inteligência de choco que é a série American Pie) o mesmo tipo de sagacidade na compreensão de que o humor é um gesto de humanismo. Olhe-se para o seu percurso e percebe-se que o que o Williams cinematográfico prolonga é a derrisão inventiva de Jerry Lewis casada com a sagacidade de Jack Lemmon e não o slapstick imitador de Buster Keaton, que o seu contraponto directo, Eddie Murphy, ensaiou.

Em 1996 Williams interpretou Osric na adaptação que Kenneth Branagh realizou a partir de Hamlet, de Shakespeare. O actor era aqui um mensageiro enviado à corte do príncipe da Dinamarca para negociar as condições do duelo com Laertes. A breve sequência na qual participou era, vista agora, uma espécie de modo de agir do próprio actor, alertando para a necessidade de divertir os cortesãos com uma linguagem inventiva e imaginativa. No fundo, para criar um engodo que pudesse fazê-los acreditar em qualquer outra coisa que não o seu propósito original. Era uma personagem secundária, de sombra, daquelas que se costuma cortar nas adaptações, mas, talvez pela sua clarividência, capaz de demonstrar, sabedora que é, os modos e usos de uma prática performativa com intenções mais vastas do que o próprio divertimento. Era um mensageiro, colocado ao serviço de uma missão, com uma presença que não se deveria notar, alguém ali apenas para detonar uma acção. Alguém ao serviço, como Williams foi. O melhor exemplo? O Génio da lâmpada, em Aladdin (1992), capaz de transformar o mundo por um abraço. Mas, na relação de confiança e cumplicidade que criava, o alerta para as responsabilidades que decorriam das escolhas que eram feitas.

Em 2011, quando Williams se estreou na Broadway, a sua interpretação em Bengal Tiger at the Baghdad Zoo mostrava como atrás de uma máscara se pode esconder a possibilidade real de tragédia. A partir do texto de Rajiv Josef, o actor interpretava um tigre solto nas ruas de Baghdad que ensaiava modos de compreensão da guerra entre americanos e iraquianos. Era um ataque severo à retórica e ao perigo da metáfora ilusória que a interpretação revelava através de uma gestualidade áspera e de confronto. Era, afinal, a revelação do gesto como palavra e da imagem como acção. Era Williams num território de composição sem artifícios, capaz de utilizar a sua persona como veículo para combater o cinismo dos tempos modernos.

Ao longo da sua carreira, Williams construiu uma persona cinematográfica que confundia, na gargalhada, a possibilidade de tragédia. Em O rei pescador (1991), a sabedoria da rua que constrói os diálogos daquele vagabundo decorre da mesma inteligência formada na resiliência ao quotidiano que moldou as personagens de Bom dia Vietname (1987) e Jacob, o mentiroso (1999), dois contadores de histórias que iludiam para prosseguir uma realidade que lhes fosse (que nos fosse) mais fácil de suportar.

A ideia de proximidade criada por Williams através das suas personagens é, por isso, a possibilidade de reconhecer nele uma centelha de inadaptação e inconformismo que nos inspirasse e nos tornasse melhores, exigindo sempre estar à altura das circunstância. Eram personagens de gente que procura e de quem não se conforma, porque feitas para quem procura e não se conforma.

Assim, vistas à dolorosa distância da perda, as personagens tutoriais de O Clube dos Poetas Mortos (1989) e O Bom Rebelde (1997), são personagens que existem como veículos para a inadaptação dos outros, transferindo assim, num gesto de relevação invertida, um modo de pensar o mundo. Até mesmo em The Night Listener (2006), a sua personagem depressa transformada em vítima é, durante grande parte do filme, a única possibilidade de redenção daquela que será a sua némesis.

Talvez esta possibilidade de diálogo constante, de alguém que parecia falar ouvindo, explique a relação de proximidade que Williams criava com os diversos públicos, vindos de contextos contrastantes. Esta noite, no Twitter, dois exemplos que não imaginaríamos pertencerem a uma juventude criada pelo exemplo de Williams, Lena Duhnam, a argumentista e actriz de Girls, e Xavier Dolan, o realizador canadiano, de Os Amores Imaginários e Tom na quinta, manifestavam a perda profunda, ao nível da intimidade familiar, que a morte do actor provoca.

É possível imaginar que essa familiaridade decorra da tipologia de personagens que foi compondo. Ao longo do seu percurso houve vários médicos (Despertares, Patch Adams, O Bom Rebelde), num gesto de descoberta progressiva através da construção de vontade própria nos pacientes, do mesmo modo que houve processos de crescimento e aprendizagem dolorosa à nossa frente (O mundo segundo Garp, Hook, Toys, Being Human). Houve uma anti-herói, Popeye, mas nunca houve o que ele sempre quis, um vilão em Batman, esteve para ser Joker mas depois recusou ser Enigma. Talvez porque foi sempre mais fácil, e contudo sempre surpreendente, ver nas gargalhadas provocadas pelo actor o papel de um pai à procura dos filhos que, na verdade, eram processos de reconstrução de personalidade e filiação (os grandes veículos Jumanji, Mrs Doubtfire, The Birdcage, os filmes esquecíveis World’s Greatest Dad, Old Dogs). Mas houve sobretudo, a aprendizagem das próprias emoções, normalmente através de aliens e robots que procuravam adaptar-se, compreendendo e revelando, a ambiguidade e a fragilidade das emoções humanas (na série Mork & Mindy, no filmes Biccentenial Man, onde fazia um robô, e em Flubber, onde a sua ideia de cientista vivia de uma bonomia comovente, ou a voz de Dr. Know, a máquina que responde a todas as perguntas em Inteligência Artificial).

No percurso do actor, na errância de quem procurava um lugar, houve afinal, e por isso, entre pais, médicos, extra-terrestes, presidentes, filósofos de rua e crianças por crescer, um imenso desejo de pertença que era, afinal, um ambicioso desejo de se ser melhor. Mesmo os seus vilões eram figuras de uma amargura imensa. Homens atirados à banalidade dos dias, a quem a vida tinha passado ao lado, alimentados pela força de uma infinita tristeza. Em One Hour Photo e Insomnia (ambos de 2002), o exercício era o de identificar na profunda e amarga solidão em que viviam essas personagens as razões da própria culpa que nunca deixavam (deixávamos) de sentir. Eram inadaptados antes de serem objecto de antipatia. E a desconcertante relação que criavam com os espectadores resumia a dificuldade de vermos a personagem antes de Williams. Dirá Orsic a Hamlet sobre Laertes, o que poderíamos nós dizer de Robin Williams: “Acreditai-me, um perfeito fidalgo, cheio das mais excelentes distinções, de companhia suave e de grande aparato; na verdade, para falar dele como ele merece, direi que é a carquilha e o calendário da fidalguia; porque nele encontrareis o receptáculo de todos os méritos que um fidalgo gosta de ver.”

Há uma frase que Mafalda, a personagem criada pelo argentino Quino diz sobre a vida que se aplica como uma malfadada luva a Robin Williams: “a vida é uma escola extraordinária, só é pena que os diplomas sejam entregues no cemitério”. Numa brevíssima passagem pela série Louie, Williams é visto a homenagear um homem de quem aparentemente todos diziam gostar, prometendo a Louie C.K. que quem morrer primeiro irá ao funeral do outro, já que ninguém aparecera no funeral de Barney Ross. É como diz a sua personagem num outro filme (World’s Greatest Dad, 2009): “Costumava pensar que o pior da vida é acabar sozinho, mas o pior na vida é ficar com aqueles que nos fazem sentir sozinhos”. No filme Deconstructing Harry, de Woody Allen (1997), Robin Williams interpreta um actor em crise e que, por causa dessa crise, vive desfocado, porque é a própria vida que ele vê desfocada. “Estou a ter uma overdose de mim”, diz ele a dada altura. A revista online Slate lembrava hoje que em Death to Smoochy (2002), Williams interpretava um ex-herói do humor que lembrava a liberdade criativa da década de de 1970, precisamente aquela a que se referia o perfil do Los Angeles Times. Caído em desgraça pela chegada de um rival,Rainbow Randolph criava uma última performance, imolando-se em plena Times Square perante a impassividade dos que só ali estavam para assistir a um espectáculo. “Ninguém pode acabar comigo. Só eu posso acabar comigo”, dizia a personagem. Uma leitura a posteriori bastante negra, potenciada agora pelo suicídio de quem não conseguiu sobreviver à imensa depressão na qual vivia.

Agora, tal como disse Alladin, no último abraço ao seu gigante a azul amigo: “Génio, estás livre”.

2 comentários a Robin Williams: A máscara do actor

  1. Caro autor , o Gênio , agora livre , há de sorrir confortado ante uma ” carta ” à altura – ao menos um compreendeu ” sorrirá ” êle lá com seus novos botões … e sua solidão começará a derreter , longe do frio da mediocridade ” dos que nos fazem sentir sózinhos ” e que o asfixiou bem antes de ontem … . Deve ter piscado prá voce , liberto e compreendido .

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