Abecedário de Avignon: E, de ego

 

 

Shakespeare dizia: o grande teatro do mundo. Em Avignon a frase está a ser reescrita: o grande ego do mundo. A propósito de The Humans, do franco-indiano Alexander Singh, artista plástico em estreia delirante no Festival de Avignon, escreveu Philippe Lançon, no Libération: “os que querem fazer ou refazer o mundo tem sempre mais palavras do que talento”.

Avignon, dia 7, em quantos espectáculos falhados já vamos? Talvez tivesse sido boa ideia se a Frente Nacional tivesse ganho e o festival tivesse sido anulado. Talvez os sindicatos se pudessem organizar e preparar, de facto, uma greve de tal ordem que anulasse o festival. Talvez devêssemos todos pedir que a chuva continuasse. Talvez isso tudo impedisse que tivéssemos que ser confrontados com espectáculos como The HumansFalstafe (Lazare Herson-Macarel), Hypérion (Marie-José Malis), Un jour nous serons humains (David Léon, Hélène Soulié, Emmanuel Eggermont) e tememos já o que possa acontecer com Huis (Jossee de Pauw) e O Príncipe de Hamburgo (Giorgio Barberi Corsetti).

Mas todos estes espectáculos são, afinal, modos que os diferentes encenadores encontraram para se colocarem na dianteira de um discurso sobre a identidade, mesmo que a essa identidade não tenham nada a acrescentar.

Talvez o caso mais gritante seja mesmo a adaptação que Marie-José Malis fez do romance de Holderin, Hypérion, viagem simbólica a uma democracia em perda onde o grupo de peregrinos filosofa sobre o mal do mundo. Mas o que sobra do romance nesta adaptação soporífera, deprimida e depressiva, que confronta os espectadores a uma violência visual e dramatúrgica inauditas?

Não foi preciso que a imprensa dissesse que este é, provalvelmente, o pior espectáculo alguma vez apresentado em Avignon. No dia da estreia a sala Benoit XII ficou vazia após o intervalo. Dos 200 lugares ficaram 60 espectadores. E não foi porque na véspera tivesse sido anunciado que, ao invés de três horas o espectáculo teria cinco. Poderia ter as horas que quisesse se nessas horas acontecesse alguma coisa. Nada. Violência, gritaram. Violência, sente-se. No centro apenas a vontade da encenadora em dar a ouvir um texto mas fazendo-o como se mais nada importasse.

Só não se inclui nesta lista Orlando ou l’impatience, de Olivier Py (ainda que o mereça complemente) porque vive de dois actores pelos quais dá vontade de dar a vida – Mattieu Dessertine e François Michonneau. Mas o que o director do festival decidiu fazer, numa espécie de hagiografia de um encenador que é, afinal, uma auto-ficção, faz pensar a uma imitação menor de As Crianças ao Poder, de Roger Vitrac.

 

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