Vá, força, dizia-nos o Miguel

 

Certo dia, ainda estávamos em Picoas, vem o Miguel Gaspar a correr da sua mesa para dizer: Morreu X. E eu soltei um valente “foda-se” que fez toda a gente rir. Era daquelas pessoas que não dava jeito nenhum que morresse porque, quando morre, temos que parar tudo o que temos para fazer. Eu disse: “não morreu nada” porque me dava imenso jeito que não tivesse morrido e o Miguel diz: “bom, queres confirmar?”. E eu fiz dois telefonemas e afinal não tinha nada morrido e então acrescentei: da próxima vez ligamos primeiro para casa da pessoa e se ela atender, pronto, ficamos a saber que não morreu. E rimos todos. O Miguel morreu e nós já sabíamos que ele ia morrer mas todos os dias, quando partilhávamos as notícias sobre o seu estado de saúde, era como se adiássemos o que já sabíamos que ia, inevitavelmente, acontecer. Nem as boas almas como o Miguel conseguem fugir a isso. E o Miguel morreu. Foda-se.

Depois desse episódio, disse-me: “Não vais para Avignon sem deixar o texto feito”. Rimos outra vez. E eu disse-lhe que sim e comecei a fingir que estava a escrever. Já passaram dois anos. Não passaram dois meses desde que o Miguel entrou no maldito hospital.

O Miguel era boa alma, daquelas fundas, que te olham com respeito, que nunca te dizem que estás a começar, que tens muito para aprender, que nunca é condescendente para com quem não sabe. Ele dizia: “estamos sempre a aprender”. E é verdade.

Um dia tive que fazer uma entrevista a um filósofo e o Miguel mexeu naquele texto como se estivesse a moldar uma utopia. Não era só porque ele tinha vindo da filosofia. Era também porque a filosofia era uma implicação pública e um comprometimento com o que de mais exigente se pode pedir de nós: presença. E quando lhe disse que eu próprio tinha dúvidas quanto à legibilidade de algumas das passagens, ele disse-me: “estamos aqui para que as pessoas pensem por si”.  O Miguel não ensinava, dava a mão. O Miguel não explicava, reflectia. O Miguel não argumentava, pensava connosco.

Às vezes falávamos de cinema, de teatro, de livros e de um programa de televisão mas na verdade estávamos a falar de política, de estratégia, do impacto nas vidas das pessoas das decisões dos outros. Nunca o ouvi dizer que nada era impossível. Que era difícil sim, “mas é para isso que aqui estamos”, disse ele, às tantas da noite, no dia em que fizemos capa com os 20 anos do CCB. Nem eu nem a Lucinda conseguíamos encontrar um título para a capa e ele olhou para mim e disse: está aqui. E estava, ali, à nossa frente.

Tantas vezes ele dizia “claro”, “está aqui”, “tu já sabes”. Era a forma que ele tinha de nos dizer que trabalhávamos juntos. Só hoje me apercebi que o Miguel chegou ao PÚBLICO depois de eu começar a nele escrever. Parece-me absurdo. Como é que o PÚBLICO existiu antes do Miguel? E agora?

“Vá, força”, disse-me ele tantas vezes.

Vá, força.

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