Isabel Alves Costa (1946-2009)
“A construção de um pensamento é, sem sombra de dúvida, um fenómeno eminentemente colectivo”.
Existem poucas pessoas de quem sinta tantas saudades como da Isabel, da Isabel Alves Costa. No dia em que morreu descobri, pela primeira vez, o que pode ser o vazio deixado por aqueles a quem escolhemos como família porque é com eles que queremos mudar o mundo. Ainda é.
No dia em que a Isabel morreu, escrevi este texto para o PÚBLICO. A Isabel Alves Costa será homenageada hoje, dia mundial do teatro, com a medalha de mérito cultural, no Teatro Nacional São João.
No dia em que a Isabel morreu
primeira vez que falei com a Isabel foi depois de ela descer as escadas do Auditório de Serralves, tinha eu acabado de moderar um encontro, e me dizer o quanto gostava do que eu escrevia, na altura só no blogue “O Melhor Anjo”. Ficámos imenso tempo à conversa, ela cheia de entusiasmo, eu de veneração. Com o tempo a Isabel foi-me dizendo que isso da veneração era um disparate. Ela tratava-me como um igual. Ligava-me, e eu a ela, e ficávamos horas ao telefone. Ríamos imenso, partilhávamos dúvidas e opiniões. Depois veio ter comigo no fim de uma conferência no Teatro Nacional S. João e disse que queria que fosse falar no Festival de Marionetas do Porto. Eu dizia-lhe que sim a tudo. Como não?
Fui mais vezes ao Porto por causa dela. Eu fiquei tantas vezes na casa dela e do Manel. Ficava em casa dela e perdíamos a noite a traduzir, a rever, a tomar chá, ela a jogar paciências e eu a perguntar-lhe o que é que ela achava que eu devia fazer e ela a dizer que eu sabia melhor do que isso… Ainda tenho ali o doce de laranja que me deu da última vez que lá estive. Vimos tantas coisas juntos, lemos e ficámos horas na conversa em Lisboa, no Porto, em Paredes de Coura, em Paris. Uma vez andámos no meio do rio Coura a falar da vida. Outra vez apanhámos um táxi em Paris, chovia imenso, tinha-a encontrado no café de uma mesquita de que ela gostava para irmos juntos a um recital do Luís Madureira, ela estava feliz porque se recordava dos tempos do Maio de 68 e eu pedi-lhe para os recordar no dossier que fizémos na Obscena sobre o tema.
Eu enviava-lhe os meus textos. Ela queria que eu lesse os dela. E depois mexia neles como se importasse para alguma coisa o que eu achava. Ela achava que sim. O último, para uma intervenção que ela foi fazer num debate sobre politicas culturais, revimo-lo no Cidade do Porto, onde nos encontrávamos para café e antes de, invariavelmente, descermos para um outro café no Guarani, junto ao seu minúsculo escritório. Foi aí que ficámos horas a reler o livro dela sobre o Rivoli, que acabou por ser pré-publicado na Obscena mais de um ano antes de ter sido editado. E ela agradeceu como se não fossemos nós a ter que lhe agradecer. E mais agradecimentos serão poucos porque não foi só uma figura da cultura que se perdeu, foi também um conjunto de princípios e valores.
Ficávamos semanas sem nos falar e depois atropelávamo-nos com ideias. Havia sempre ideias e projectos e calendários que não chegavam para o que queríamos fazer. E tínhamos tantas coisas planeadas para os próximos meses. Quando lhe ligava a pedir que ela escrevesse na Obscena, e ela nunca me dizia que não, só se queixava da falta de tempo (mesmo os temas, se havia alguma resistência, depressa a abandonava) mas dizia sempre que sim e entregava os textos sempre a perguntar se eu achava bem… Claro que achava bem Isabel. Claro que sim. Contei-lhe tantas coisas, coisas pessoais e profissionais. E ela sempre a ouvir. E a nunca achar que eram disparates da juventude. Opôs-se ao fim da Obscena quando um dia lhe liguei a dizer que estava a pensar acabar com a revista. E por isso ligava-lhe sempre para saber o que ela achava, quando não era ela a ligar-me primeiro.
Guiava-me por entre referências, queria saber o que eu andava a ver, mandava-me mensagens às mais diversas horas, queria que lhe contasse tudo. Telefonava-me e dizia-me sempre que havia mais para fazer. Falámos duas vezes no passado mês, uma para me contar, radiante, do quanto tinha gostado do “Pitié”, o espectáculo do Alain Platel, seu amigo e de como o tinha convidado para um projecto; depois para me dizer que não sabia se havia próxima edição do FIMP (que acabou por se resolver). A última mensagem que me mandou foi há uma semana, não eram ainda nove da manhã, para me dizer que estava a ler o que tinha escrito sobre Avignon, festival sobre o qual ela me pedia que não lhe escondesse nada. Estava doente, estava frágil, mas não desistia. Era uma leoa, uma resistente, não conseguia dizer que não, não sabia desistir, era feita da estirpe dos verdadeiros comandantes. E tantas foram as vezes em que a minha vida esteve ligada à dela (à generosidade dela) que eu me esqueci que um dia ela ia morrer. E foi agora. E eu não quero acreditar que perdi uma amiga, uma mentora, um pilar, a Isabel.