Notas de ensaio: Tropa-Fandanga, pelo Teatro Praga

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A páginas 10227 do livro “Who needs realism when you have fakism?”, volume Iº de um diário de observação sobre o Teatro Praga, a companhia escreve o seguinte relativamente ao verbete “Guerra”:

“A: Nós agora já nos conhecemos melhor. Temos uma maior cumplicidade e conseguimos discutir mais. Há muitas coisas em comum, conseguimos dizer alguns nãos em conjunto – depois, claro, que há muitos desencontros. E muitas vezes os espectáculos também são feitos disso, desses confrontos.
B: Trabalhar em conjunto… isso parece-me uma coisa muito adulta e bem-educada!
A: Não é bem-educada…
B: Conseguem trabalhar em sintonia?
A: Sintonia des-sintonizada… É difícil”.

Houve três momentos em que a guerra foi motivo de trabalho:
– D. Juan volta da guerra (1997)
– Oil Ain’t All, JR (2010)
– Terceira Idade – Uma Comédia de Guerra (2013 – título original do texto de José Maria Vieira Mendes que, mais tarde daria origem, de forma muito alterada, a Terceira Idade)

Houve quatro momentos em que a guerra (emocional, metafórica, teatral) esteve presente de diferentes modos:
– La Ronde (2002, onde a guerra serve de pano de fundo para o texto de Schnitzler);
– De repente eu (2003, a partir de Nuno Bragança e espectáculo-manifesto sobre as gerações imediatamente anteriores à da companhia e à procura da sua definição a partir da identidade de um país chamado Portugal)
– Sobre a mesa a faca (2004, co-criação com a Cão Solteiro, introduzindo a ideia de teatro-catástrofe);
– Quarteto (2006, onde Heiner Muller descreve um bunker de uma cidade bombardeada como lugar ideal para o confronto entre os amantes)

Houve três momentos que determinaram a constituição daquilo a que, mais tarde, os próprios haveriam de admitir como “teatro da restauração”
– O Avarento ou a última festa (2007)
– Sonho de uma noite de verão (2010)
– A Tempestade (2013)

Houve três momentos em que a música foi determinante para a narrativa (ou se apresentou como estruturante, ainda que podendo existir apenas como modelo ou servindo como motor)
– Discotheater, a durational performance (2006)
– Turbo-Folk (2008)
– Demo, A Praga Musical (2009)

Houve três momentos no qual a história do teatro irrompeu pela dramaturgia
– Título (2004)
– *****(Cinco Estrelas) (2005)
– Hamlet sou eu (2007)

(e um que não se chegou a fazer “The Worst Of…”, espelho-antítese de *****)

E, no entanto, se para ler Tropa-fandanga, que estreia dia 20 Fevereiro no Teatro Nacional Dona Maria II, chamássemos à memória tudo isto, tudo isto seria absolutamente desnecessário. Porque, de facto, ao fim de um ensaio de 9 horas, o que me ocorre é que é mais do que uma revista. Faz um pino difícil entre a memória (chamando números antigos de revistas de sucesso e retrabalhando-os numa lógica que não esconde a necessidade da legibilidade sem ser explícita e, assim, criando pontes de leitura tanto com a memória colectiva como com o que possa ser um estudo dramatúrgico sobre a elasticidade do seu impacto mediático), e esse teatro da restauração, ou de corte, que coincide com a chegada da companhia às grandes salas nacionais. Mas, como texto político que é, usa as referências comuns – e muito em particular o estrito esquema funcional do teatro de revista – para perguntar o que pode o teatro fazer quando se põe a tratar da memória recente. É, por coincidência temporal, e porque passam 100 anos sobre a 1ª Guerra Mundial, um texto que parece ter aprendido com Odon von Horvath a observar não apenas (ou necessariamente) o outro, mas a observar o modo como o outro se observa: “Nada é mais útil ao sentimento de infinito do que a estupidez”, disse Horvath em Histórias dos Bosques de Viena. E no cuidado que existe entre não se ser nem grosseiro nem demasiado autista ou auto-referencial, há na articulação entre música (Sérgio Godinho, João Paulo Soares), texto (colectivo) e cenografia (José Capela) uma consciência do momento historico que o país atravessa. Que isto aconteça entalado entre Plauto (O Aldrabão), Shakespeare (Coriolano) e Pinter (Regresso a Casa), só pode significar que não é inocente que a acidez do texto nos iluda e nos faça sentir confortáveis. É quando no rimos que as cadeiras se partem.

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