Já se tinha percebido, pelo modo como haviam construído um percurso dentro das várias histórias do Antigo Testamento, que a intenção dos produtores e argumentistas da série A Bíblia, não era uma reflexão – teológica ou, simplesmente, de dramaturgia televisiva – sobre os mistérios de interpretação que os livros sagrados contêm. Aquilo a que a SIC intitulou como “segunda parte” da série, numa inexplicável – a não ser por aproveitamento mediático – condensação dos episódios em duas tardes, esclarece, se dúvidas houvesse, que os objectivos principais de A Bíblia correspondem a uma evangelização superficial, ao invés de uma inscrição dos valores inscritos nos livros que a compõem.
Dir-se-á que é uma leitura para os tempos modernos, mais interessada em garantir que, pela velocidade e pouca explicitação, a curiosidade ficará saciada e, pelo menos, despertará alguma consciência. Mas é importante reforçar que a série foi concebida para um público americano, profundamente envolvido – e cada vez mais – numa leitura apocalíptica, em vez de interpretar as escrituras como um guia e não como um texto determinista.
Dir-se-á que é A Bíblia para os tempos de crise de valores. Musculada no ataque às ofensas, generosa no que puder capitalizar a favor de um argumentário salvífico. Não viria daí mal ao mundo se, ao longo do argumento, os episódios não fossem manietados de modo a se concentrarem numa espécie de redenção pela chegada de Cristo e condenação de todos os que contra ele se insurgiram.
É de lamentar que assim seja. A riqueza da Bíblia está, precisamente, no modo como espelha as contradições do ser humano e permite que nos possamos rever, crentes e não crentes, em acções que produzem consequências e em decisões que interferem grandemente com os valores que dizemos defender.
De uma maneira geral, os argumentistas optaram por uma caracterização plana das personagens, por uma pincelagem grosseira dos contextos e uma desatenção consciente às diferentes percepções que, então, existiam em torno da fé e da luta pelo poder.
O aspecto mais evidente desta opção reside no modo como os romanos surgem na história, pretendo os argumentistas mostrar que a preocupação maior estava na fé dos que seguiam Cristo. Acontece que, historicamente, os romanos eram uma cultura panteísta e, por isso, menos preocupados com um culto ou uma fé monoteísta. A sua maior preocupação estava concentrada na ordem pública e não no culto. Por isso, as reacções que tiveram, por pressão dos judeus, concentraram-se no modo como a presença de alguém que uns viam como Messias implicava, por exemplo, na colecta de impostos. Daí a importância vital de um episódio como a expulsão dos vendedores do templo, que deveria permitir mostrar um Cristo colérico e não, como sucedeu, simplesmente perturbado.
A dificuldade de compreensão do que terá levado à condenação de Cristo tem a ver com a impossibilidade de esclarecer os motivos que levaram os judeus a pressionar e os romanos a actuar. O diálogo ente Pilatos e o líder dos judeus, que insistiu na inscrição “Aqui jaz Jesus, O Nazareno, rei dos Judeus”, vem daí, da compreensão de que não existem culpados claros nem cúmplices descartáveis.
Por isso, e inevitavelmente, a pressão é colocada em que interpretar Cristo, que, na dificuldade de percepção das intenções do outros, deve ser suficientemente carismático para não causar dúvidas sobre o equívoco – leia-se, os receios que causava – dos outros.
Diogo Morgado, o actor português que foi escolhido para interpretar Jesus Cristo está longe de desiludir mas ainda mais longe de impressionar. Nem todas as responsabilidades lhe podem ser assacadas. O modo como a realização trata a figura de Jesus, filmando-a constantemente em câmara lenta, iluminada de modo a pertir que um halo de luz lhe cubra a cabeça e não permitindo que o actor represente senão através de “máscaras expressivas”, impedem uma verdadeira caracterização. Tem razão Stephen Colbert quando no seu programa The Colbert Report, diz que “Diogo Morgado é demasiado bom para poder ser criticado”. É mais do que isso: demasiado distante, demasiado holográfico, demasiado puro. A empatia faz-se não pela dom da retórica mas pelo facto de estar a representar Jesus Cristo, como se a personagem existisse antes do actor, em vez de ser o actor a fazer-nos chegar até ela (naturalmente existe, mas não é esse o ponto aqui – é de uma ilustração, de uma construção, no limite de uma ficcionalização, que se trata)
Ainda assim, é uma vantagem quando comparado com as outras figuras que nunca têm margem para qualquer interpretação. Os exemplos mais chocantes serão mesmo Maria Madalena e Judas, pivôs da complexidade da figura de Cristo e, aqui, apenas peões numa narrativa superficial.
Dir-se-á, para concluir, que não se pode fazer teologia pela televisão. Seria verdade se não fosse pela televisão, precisamente, que se fizesse evangelização e não fosse através da televisão que muitos dos grupos que foram consultores desta série procurassem os seus fiéis. O sucesso da série nos EUA começa a explicar-se por aí, sabendo-se dos visionamentos colectivos. Poderá ter funcionado nos Estados Unidos. E, sobretudo, poderá ter funcionado por o tempo de respiração entre cada episódio ter sido à ordem de um por semana – servindo os episódios como aula de catequese seguida de amplo debate. A opção da SIC de condensar em duas tardes a série completa, perturbou a relação que a mesma poderia criar com o público para a qual se dirigia e até mesmo criar novos. Da série de de leitores da Bíblia.