Uma série sobre a Bíblia produzida por um apoiante de Sarah Pallin, produtor de reality shows e tendo como consultores vários grupos religiosos que, no seu conjunto, não são senão expressões marginais de uma mesma fé, mas poucos líderes religiosos congregadores, poderia ser má se não fosse pior ainda.
A exibição na SIC não ajudou, é verdade, porque não respeitando o tempo dos episódios, acelerou as cenas e editou-as, em intervalos (e sobretudo no fim), sem respeitar o tempo narrativo de cada um dos guiões originais.
O problema maior não estará, por isso, na expectativa que uma série sobre a Bíblia possa criar. A recorrência atenuou a expectativa e a pluralidade da oferta diminuiu o potencial mobilizador de uma série. A maior fragilidade está no modo como tenta, ambiciosamente, condensar sem um ponto de vista dramatúrgico, um conjunto de episódios que, ainda hoje, carecem de uma leitura linear. O resultado não é senão uma versão digest da Bíblia, prejudicando, em nome de uma espectacularidade que já não é de fé mas de imediatismo, uma inscrição dos valores nela inscritos e que servem para os crentes e não crentes como valores fundadores (entre outros naturalmente) da sociedade da qual somos herdeiros.
O Antigo Testamento coloca dúvidas de interpretação nos mais diversos teólogos, precisamente pelo confronto entre a crença e a fé pedida aos homens num Deus que surge, por diversas vezes, exigente e vingativo. Por isso, o cuidado na ficcionalização de uma história, já de si exercício de construção que serve um propósito claro, deverá obedecer a uma clarificação contrabalançada. Ou seja, sujeita os argumentistas a um trabalho de interpretação que é, em si mesmo, um exercício de construção que não pode ser fragilizado por opções ideológicas – como acontece com os episódios do profeta Samuel, dos reis Saul e David, e da luta por Jerusalém por aqueles a quem a terra foi prometida – ou de economia estritamente narrativa, como acontece com os episódios de Abraão e Samsão.
A série que a SIC agora exibiu, e que está a ser anunciada como um sucesso de audiências num canal de cabo, não faz traz nada de novo, é verdade. Mas também, ao não conseguir fazer trabalhar a seu favor essa ausência de novidade, não consegue a respiração necessária que sustente as escolhas feitas. Pelo contrário, inventaria episódios, condensa os acontecimentos e apressa a caracterização das personagens partindo do princípio de que os espectadores completarão o que falta. Acontece que o público-alvo para o qual a série se dirige, inscrito num processo de evangelização mais vasto nos Estados Unidos da América, não é conhecedor das subtilezas do Antigo Testamento. Mais, com a profusão de séries e filmes que transformaram as histórias bíblicas em confrontos de super-heróis – ou transformaram super-heróis em descendentes de figuras inscritas na Bíblia – a distância entre a imagem e história tornou-se ainda maior. E a série é disso conhecedora. No início é Noé quem surge como narrador e, à pergunta de um dos seus filhos – “Porquê?” – anunciando a dúvida que permanecerá como irresolúvel perante as escolhas dos homens e a reacção de Deus, responde: “Más decisões, más decisões”.
A história que se seguirá será, portanto, a história dos que fizeram as escolhas certas, seguindo as indicações de Deus – Abraão, Moisés, Samsão, Saul, David, Daniel – e aqueles que dele duvidaram, ou que, possivelmente por Deus, foram colocados no caminho dos homens bons para testarem a sua fé.
Curiosamente, a série perde para os filmes bíblicos que, ao longo dos anos, construíram as imagens que lêem a Bíblia e que, por isso mesmo, se tornaram representações directas – e dilectas – das figuras e dos factos. E até para as séries, mesmo as feitas para os canais por cabo, e portanto com menos meios, que têm, nos últimos anos tentando recriar tempos históricos aproximados. Basta comparar a travessia do mar vermelho com o filme de Cecil B. DeMille, Os Dez Mandamentos, feito em 1956 com muito menos meios tecnológicos do que hoje se colocam à disposição dos produtores e realizadores, e perceber que o problema não são os efeitos visuais mas a simplicidade do argumento. E perde ainda para a reflexão teológica ao não permitir que se instale a dúvida sobre as diferenças entre os homens bons e os outros, apelidados de infiéis quando a fé não tinha ainda encontrado a sua forma monoteísta, quando, na aceleração do argumento, simplifica e caricatura as relações entre eles. O episódio de Samsão, numa espécie de caracterização simplificada que o transforma num Hulk antes do tempo, é disso exemplo.
A ênfase colocada nos episódios que antecedem o surgimento de Jesus Cristo justificariam o tempo que a série lhes dedica, nomeadamente considerando que Jesus se definia como “filho de David”. Mas a simplificação dos factos sugere uma pressão do lobby pró-israelita, visível pela insistência com que falam da “terra prometida”, que caracteriza os soldados como guerreiros escolhidos e classifica todos os oponentes como filisteus bárbaros. Ou seja, a preparação para a chegada de Jesus Cristo – e que, portanto, introduzirá a presença de Diogo Morgado – é feita assumindo uma premissa que, de imediato, lança pistas para um debate que, nos Estados Unidos da América, e em particular para a direita religiosa e conservadora, nunca foi pacífica.
A interrupção abrupta do 5º episódio, por força do início do Jornal da Noite, impede esclarecer de que modo vai a série responder à pressão colocada sobre os judeus, impedidos pelo rei da Babilónia de rezar por um mês. A questão é essencial porque o fim do Antigo Testamento significa, também, a resposta que enquadra as acções de um deus vingativo e prepara um novo mundo, onde o sofrimento dos homens será personificado pelo filho de Deus, sacrificado pelo próprio pai.
Continua.