Teatro Praga: a diferença entre saber fazer e inventar

Fotografia de ensaio por Daniel Rocha/PÚBLICO

Fotografia de ensaio por Daniel Rocha/PÚBLICO

Chegámos ao fim, diz o Teatro Praga que, dias 15 e 16 de Março no CCB (e depois no resto da Europa), inventaria várias formas de o contar. A Tempestade é o último degrau de uma história que começa agora.

Houve um tempo em que para se falar do Teatro Praga – que este ano faz 18 anos – era preciso imaginar um contexto para poderem existir. Eles e outros, naturalmente, num país teatral em transformação, onde já não serviam de muito as fronteiras entre as diferentes disciplinas, onde os espaços de apresentação marginais eram, afinal, aqueles que importavam face aos outros contra os quais se gritava. E onde o público, formado por uma década de eventos que haviam transformado Lisboa na capital cultural que há décadas deveria ter sabido ser, não sabia se estava a ser convocado para um ritual ou a ser expulso desse ritual.

Esse tempo que acabou é agora convocado em A Tempestade, que hoje e amanhã se apresenta no CCB inaugurando uma digressão europeia que levará o Teatro Praga a Paris, Londres, Roma e Berlim. É a leitura, “o diálogo”, dizem, que a companhia faz com a memória do texto escrito por Shakespeare, sem se saber se foi realmente escrito pelo dramaturgo em 1611, ao mesmo tempo que o cruza com a leitura, ou a reformulação, que Henry Purcell compôs em 1695, tal como os Praga haviam feito com Sonho de uma noite de Verão, também no CCB.

Shakespeare é, aqui, “uma bengala”, “pode ser tudo”, diálogo ou afronta a um texto que está incompleto mas que não fala senão de ilusão. E, como convém, de ilusão teatral. Voltamos para encontrar, de novo, um dispositivo cénico que convoca diferentes tempos narrativos, nomeadamente através do uso do vídeo, que projecta as personagens em palco para uma bidimensionalidade da qual elas gostariam de se ver resgatadas. Mas também, através dosmemento mori, uma evocação da morte através de máscaras, assinadas pelos artistas plásticos Catarina Campino, Javier Nuñez Gasco, Vasco Araújo e a dupla João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira. E sobretudo, um texto cheio de ideias que se escondem atrás de uma parafernália visual e referencial que correm o risco de passar despercebidas.

São ideias que denunciam o programa da companhia, que o põem em causa e perspectivam o que se seguirá. São frases que guardam a dimensão premonitória de uma encenação que se desenha entre a ideia de que o fim é a viagem que se faz ou o momento que eternamente se adia. “Temos que tirar minutos às horas”, diz André e. Teodósio, que interpreta o mago Próspero, senhor da ilha mágica, como se dissesse que o tempo é uma construção porque “não fica nada”. “O que importa é a viagem.” É um espectáculo que procura pensar como pode equilibrar “um lado poético hiperbólico relativamente às outras peças” a partir de “uma narrativa esquemática”, diz Pedro Penim.

Mesmo a ideia de um novo senhor que há-de vir existia já. Em Título (2004) diziam querer substituir os velhos deuses por novos deuses. Hoje, sem deuses nem chefes, mas com regras e austeridade, a ideia imaterial e pagã de um deus, ou de deuses, é substituida pela acção directa e efectiva de um senhor. “Se querem um novo senhor hão de o ter”, dizem. Um senhor, da guerra, do capital, das finanças. “Quem procura uma ilha é porque está interessado numa outra noção de vida e não na perspectiva de lucro. O lucro é para os continentais . Aqui não há lucro. Há cocktails. Há jacuzzi. Há espreguiçadeiras. Há sol.” Há, no fundo, poder que não se coaduna, nem se limita, pela obtenção de dinheiro.

A Tempestade funciona sob princípios narrativos que emulam a ideia-base do teatro da restauração, “onde o acessório foi criado para dar sentido ao que é realmente importante”, acrescenta Penim.

O mecanismo já havia estado presente em Sonho de uma noite de Verão(2010), onde a companhia ocupava o palco do Grande Auditório do CCB recriando a floresta de Titânia e Oberon num estúdio de televisão, assim fixando o abaixamento do nível de exigência do sonho – agora, como o dizem no texto, à la Jersey Shore, o reality show americano que mostra as vidas de comuns feitas heróis trash da televisão. O teatro é, como já antes emAvarento ou a última festa (2007), a partir de Molière, cada vez mais um artifício narrativo que se rarefaz até poder começar de novo. Daí a ideia de fim. A partir de agora, depois de corridos os principais palcos do país, encetada a viagem para o circuito internacional, à beira de inaugurarem um centro cultural no coração de Lisboa, o Teatro Praga reconstrói-se. E, nesse processo de exposição, “a gramática é reconhecível”. Ao longo dos anos, e esta peça comprova-o, o teatro do Teatro Praga foi de exclusão, contrariando uma tendência, e até mesmo uma estética, inclusiva. Que sugeria um caminho de acesso fácil ao mainstream qualificado. Na peça, Próspero diz ao irmão: “Estamos no mesmo barco e eu não quero estar contigo no mesmo barco [porque] és um traidor e [achas] que todos precisamos da cultura e da arte mesmo aqueles que acham que não”. Esta é a chave do texto: o hara-kiri que a companhia faz em frente aos que com eles cresceram. No livro Who needs realism when you can have fakism?, que entretanto lançaram, comissariado por Susana Pomba, recuperam uma entrevista-diálogo feita para o jornal Expresso em 2006, onde André e. Teodósio diz, a propósito da afirmação do encenador Luís Miguel Cintra sobre companhias com “uma imagem de marca, que por sua vez impede uma comunicação verdadeira”: “A questão é: todas essas companhias de diferenciação vivem na eminência de morrer”.

Mîse-en-abyme

Mais do que a falha, é um teatro da falência, que vem substituir uma ideia de catástrofe e apocalipse, disfarçado de festa, que caracterizara as peças anteriores. Não será, por isso, importante saber-se da história e do passado do Teatro Praga para o mapa de referências no qual se desenha esta ilha. Mas ajuda saber que o Próspero de Teodósio traz, no corpo, a violência de Prometeu Agrilhoado que o actor foi em Conservatório (2008), do mesmo modo que a groupie que Joana Barrios interpretará, tomando o nome de Miranda, filha de Próspero, teve, nessa mesma peça, o seu primeiro contacto com a companhia, sendo por isso um seu produto. Do mesmo modo que na relação que Patrícia da Silva – a Ariel, visível apenas para Próspero, e sua cúmplice -, estabelece com Teodósio estão as memórias dos diálogos filosóficos antagónicos que tinham em Agatha Christie (2005). E que a ideia de morte, marcada por Cláudia Jardim, que interpreta a antagonista Sycorax, traz à memória a sua presença, não apenas nesse Agatha Christie, onde morte se confundia com trágico e o modo como o teatro permitia uma confusão entre géneros e fronteiras, mas também, e sobretudo em De repente eu (2003), espectáculo a partir de A Noite e o Riso, de Nuno Bragança, como escreviam no programa, de “reconstrução de uma ruína ou de um espaço vazio, reconstrução de uma vida ou de um momento decisório e determinante, uma reconstrução desconstruída e desprovida de continuidades”. Por fim, lembrar também que António, o irmão de Próspero, é interpretado por Diogo Bento, que começou com o Teatro Praga através de uma audição feita durante um espectáculo (Título) e se tornou numa espécie de doppelganger – sombra presente e ambígua – como se tornou evidente em Padam Padam (2009), a primeira peça onde os nomes dos actores eram, também, os nomes das personagens.

É “uma mîse-en-abyme permanente”, diz José Maria Vieira Mendes, um dos autores do texto juntamente com Pedro Penim e André e. Teodósio. “É um jogo que faz contas à obra”, diz, que alimenta especulações sobre um duelo entre a realidade e a ficção, do mesmo modo que se equilibra, perigosamente, na fronteira entre o que é narrativa e o que é identidade. “Rich and strange”, termina assim uma ária de Purcell cantada por Ariel, usada por Alfred Hitchcock para título de um dos seus mais mal-amados filmes, determinando a ambição mas também a hipótese de sonhar: “Full fathom five thy father lies,/ Of his bones are coral made,/ Those are pearls that were his eyes/ Nothing of him that doth fade,/ But doth suffer a sea-change/ Into something rich and strange”. Afortunados e estranhos, dir-se-ia do futuro do Teatro Praga que se avista por entre as brumas da tempestade.

 

Versão revista do texto Na ilha do Teatro Praga, publicado a 15 Março 2013 no Ípsilon

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