
Cartaz do filme Hiroshima, meu amor
Há algumas semanas o crítico de cinema do PÚBLICO Luís Miguel Oliveira defendia, nestas páginas, a necessidade de pensar no modo como acedemos aos filmes. Vinha o comentário a propósito do regresso às salas, em cópia digital, de Vertigo, de Alfred Hitchcock, recordando uma frase do realizador Quentin Tarantino que afirmara, acerca da invasão do digital no cinema, que não tinha sido para isto que se havia inscrito.
O desejo de ver sujeita-se a regras e a princípios que não podem, nem devem, ser adulterados pelo simples desejo de mostrar. Vem isto a propósito da confusão constante que a Leopardo Filmes, distribuidora gerida pelo produtor Paulo Branco, faz entre o desejo de dar a ver e o de mostrar quando recupera, e bem, o aprofundar da relação do espectador com os filmes em cartaz exibindo paralelamente outros que pertencem a uma memória colectiva. É que erra no modo como o faz: insulta essa memória ao exibir filmes em formato DVD.O exemplo recente, ainda em sala, de Hiroshima, meu amor, de Alain Resnais, capitalizando o entusiasmo gerado pela interpretação de Emmanuele Riva em Amor, de Michael Haneke, é prova de como Paulo Branco, que durante anos construiu a imagem de defensor do cinema e da memória que, através dele, construímos sobre o mundo, ignora o que é a relação entre um espectador e um filme. Apesar de a empresa ter revelado que comprou direitos de exibição – e de a distribuidora detentora dos direitos ter confirmado ao PÚBLICO que foram adquiridos direitos de exibição em DVD -, joga-se aqui a aceitação tácita do abaixamento do nível de exigência. Hiroshima, meu amor passou no Nimas, em Lisboa, numa cópia em DVD, com falhas ainda por cima, sem que os espectadores tivessem sido alertados, pagando o preço de bilhete normal (6€) para ver um DVD em ecrã gigante.
Tratar-se-ia de um pormenor se não fosse inscrito numa lógica mercantil e oportunista que tem como destino previsível a alienação dos espectadores das salas. A opção, que combina aproveitamento mediático com entusiasmo cinéfilo, é justificada por um orçamento reduzido face ao custo de uma cópia (em média 200 euros) e a uma procura que não justificaria o investimento.
Não é a primeira vez que o DVD acontece nas salas de Branco. Aconteceu, por exemplo, nas salas do cinema King, em Lisboa, com o ciclo dedicado ao cineasta japonês Koji Wakamatsu. Não se espera que os distribuidores façam aquilo que ao Estado cumpre – e que a custo a Cinemateca, na sua escassez de meios, procura cumprir, como agora com o ciclo dedicado a Hitchcock, com cópias disponíveis dos seus arquivos. Mas espera-se que os distribuidores, no contributo que dão para uma relação directa entre o desejo de mostrar e o de projectar, sejam atentos aos modos como alimentam a distância entre as salas e os espectadores.
Espera-se mais e melhor de quem ao longo dos anos elevou o nível de exigência dos espectadores. Sob pena de que os que pagaram a sessão, por culpa de uma gestão irresponsável, se afastem de modo inequívoco das salas de cinema. De Paulo Branco e não só.
Publicado no Ípsilon a 8 Março 2013