A actriz Maria João Luís mudou-se para Ponte de Sor, onde criou a companhia Teatro da Terra. Hoje estreia, no anfiteatro ao ar livre, um novo texto de João Monge, a partir de As Troianas, de Eurípides. É uma peça de resistência e de luta, onde um coro de mulheres traz aos nossos dias a mesma dor da guerra de Tróia, mostrada ali no Alentejo profundo
texto publicado a 15 de Junho 2012 no P2. Chão d’Água apresenta-se de hoje a domingo no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa
A primeira frase que ouvimos quando entramos no cine-teatro de Ponte de Sor é “mais destreza”. Maria João Luís dá indicações às mulheres que, hoje à noite, não terão nome, serão um só coro que cantará as dores de uma mulher igual a outras, Catarina de seu nome, alentejana e, por isso, como se fosse Eufémia, da terra ali do lado, igual a tantas outras.
Chão de Água, que hoje e amanhã se apresenta às 22h no anfiteatro ao ar livre da cidade alentejana, é a nova produção do Teatro da Terra que a actriz e encenadora criou e dirige, com o marido, o desenhador de luz Pedro Domingos, desde há três anos. “Às vezes, parece mais tempo”, diz-nos quando, a seguir ao ensaio, nos leva pelas ruas da cidade, cansada, mas feliz: “Porque o que elas me dão é tanto”. Elas são os elementos femininos do Coro Polifónico da cidade, mais as jovens estudantes da escola secundária, só mulheres numa peça sobre a dor, a morte, a vingança, a raiva e a revolta feita a partir de As Troianas, do autor grego Eurípides. Já são como as que vêm de fora, como as actrizes que Maria João Luís trouxe de Lisboa e fez mergulhar na fronda dos vales de Ponte de Sor. Vales que, às vezes, fazem esquecer que esta já foi uma terra mais rica do que é, com as fábricas, como a Delphi, a fechar, com os campos de golfe a receberem turistas ocasionais e já não investidores que façam da terra outra coisa que não lugar de passagem.
É por isso que Chão de Água é “uma peça de resistência”, contra a soberba, “uma peça de esquerda”, “política”, “de luta”. Eurípides não sabia que tinha escrito sobre o Alentejo. Nem Lorca, Feydeau, Karl Valentin ou André Brun, autores que Maria João foi para ali trazendo e, através deles, aproximando-se de uma população que a via na televisão. “Eu chego ao café com as botas sujas de caca de galinha e já não sou a da televisão”, conta a actriz. Mudou-se para uma terra ali perto e isso fez toda a diferença, dizem-nos. “É uma das nossas.”
É dessa ideia de terra, de comunidade, de resistência, que fala esta peça que desde Abril tem andado a fazer chorar mulheres que teriam mais por que chorar do que uma peça de teatro. Mas, diz-nos uma, agradecida: “Vir para os ensaios todos os dias é ter a vida toda que nem sabíamos que podíamos ter”. E, por isso, arranjam-se como se fossem dias de festa, que o são.
Às vezes, ninguém sabe como as coisas começam. Para Maria João Luís, Chão de Água, sem o saber, começou quando, um dia, um amigo lhe deu a ouvir o lamento de Hécuba, retirado do texto de Eurípides, interpretado pela actriz italiana Giovanna Marini num espectáculo estreado em 1988. Mostra-nos um excerto guardado no seu telemóvel e as ruas desertas de Ponte de Sor enchem-se de versos cantados em grego antigo que nos parecem cante alentejano. A sua toada, a sua discreta modulação, o sentido de unidade que sublinha a dimensão trágica do que dizem cortam cerce a distância que vai da ancestralidade grega à actualidade dos versos de João Monge, que adaptou a tragédia grega. E, num repente, Foros de Arrão, Galveias, Longomel, Montargil, Tramaga, Vale de Açor não são só barragens, promessas de campos de golfe, montes a perder de vista e gatos-bravos a atravessarem a Avenida da Liberdade às duas da manhã. “É terra de natureza brava”, e Maria João Luís levanta o braço como se não existissem mais palavras para a descrever. Como se ficassem apenas as histórias. Como esta, de há umas produções.
A encenadora queria fazer um filme que fizesse parte da peça Cal, criada a partir do livro homónimo de José Luís Peixoto, rapaz dali do lado, de Galveias, e foi à procura de uma casa velha, tal como antes tinha ido à procura do cigano de que Peixoto falava no livro, e encontrou-o. “Tenho uma casa velha para si”, disse-lhe o presidente da junta. Uma casa abandonada, que tinha de estar vazia, porque era lá que a encenadora queria filmar a história de um homem a quem um animal comera dois dedos. E subiu a um monte com o presidente da junta até uma casa, que estaria vazia, mas que quando a porta se abriu, estava, afinal, protegida por um cão que se lançou contra o homem, conta Maria João Luís, arrepiada, arrepiando-nos. “Lançámo-nos para cima do homem, que estava a ser mordido pelo cão, a mão, a perna, o pé”. E a única preocupação do homem era que ninguém tocasse no cão. “”Estava só a fazer o trabalho dele”, dizia, cheio de sangue.” E, diz agora a rir, que ele lhe perguntava se tinham filmado tudo. “Está aqui a sua história. Viu? Viu? Era disto que estava à procura…”
E voltamos a recordar-nos de uma frase atirada por uma das participantes depois da conversa que tivemos no fim do ensaio da tarde. Perguntávamos sobre a relação entre Eurípides e o Alentejo, sobre a força do colectivo e das mulheres em particular, queríamos ler no seu discurso a ancestralidade grega. E uma delas interrompe-nos e diz, ligeira: “Para quê complicar, quando pode tudo ser tão simples? No Alentejo, é assim.”
No fim, haverá um mar de soberba, como o texto lhe chama, de que o rio Sor fará as vezes. O rio alentejano, mesmo ali em frente ao anfiteatro, vai alterar a sua placidez para as engolir e isso é o mais perto que ficam de Tróia. Por isso Ponte de Sor é também a Aldeia da Luz, inundada pelo Alqueva sem que ao seu povo tivessem perguntado se preferia morrer afogado nas casas que levara uma vida a construir, ou ir viver para uma aldeia em tudo semelhante mas onde esse tudo era já uma réplica ficcional do que ficaria, para sempre, debaixo das águas.
Ponte de Sor também poderia ser Baleizão, mais abaixo no mapa, onde uma outra Catarina foi morta pelos militares. Onde quer que fique Tróia, o lamento das mulheres é o mesmo. “Eu fui arrancada à casa como um animal/ que sorte será a minha?/ Para que me querem agora que nada sou?/ E o que irão fazer das outras mulheres?”
Olhamos para lá dos brincos que trazem, dos risos que as juntam, dos brigadeiros que oferecem a quem chega, dos medos que dizem ter tido no início e aquilo que vemos, sabemos depois, são mulheres que perderam o emprego depois de uma vida dedicada a uma fábrica, que têm um cancro terminal mas que só se queixam do joelho inchado por uma queda, que perderam um filho mas que têm também o desejo de não desapontar a encenadora.