É só já depois de já não ser possível que nos começamos a dar conta do que já não vamos poder fazer. Com o Joaquim falámos sempre muito do futuro. E falávamos muito do passado. Falávamos de tempo, que era coisa que nem eu nem ele sabíamos onde começava nem acabava mas que, na velocidade dos dias, no entusiasmo dos projectos que a ambos nos moviam, nunca deixavamos de ter sempre que nos encontravamos.
Horas de conversa. Muita raiva por as coisas não poderem ser como se havia imaginado. Muita raiva por as coisas não serem mais do que se esperava delas. E às vezes, raiva também por não ter sido nossa essa ideia. E muita má-língua, muitos nomes atirados contra a parede, para o cinzeiro, esmagados entre os livros, os programas, as esquinas bicudas do Teatro Azul. E muito respeito um pelo outro. Sempre naquela coisa de não sabermos se nos havíamos de tratar por tu ou por você. E ele dizia-me: “epá, mas não havíamos decidido que era por tu, porra?”. E eu dizia-lhe que sim, dizia-lhe “Joaquim, tu”, mas nada daquilo me soava confortável. Não porque não fosse um amigo, mas porque era alguém a quem eu, do alto da minha sobranceria, na correria que eram esses encontros, nas chamadas de telefone que ele fazia e que eu nem sempre atendia, nas vezes que lhe dizia que era preciso ter os materiais sobre os espectáculos prontos a tempo, achava sempre, acho ainda, acharei sempre, que não se podia tratar o Joaquim Benite por tu porque, afinal, como se trata por tu quem abriu o caminho que depois percorremos?
“Tu” é, afinal, forma mais próxima de chamar amigo, percebo agora que já não vou poder voltar a conversar com ele. E estava a preparar-me para o fazer, agora que dentro de dias ele ia voltar a “Timão de Atenas”, que já havia feito em Mérida e tão contente havia ficado por ter ido ver “esta coisinha, mas é uma coisinha, grande coisa, porra”, disse-me ele, em fim de festa, quando lhe vinham elogiar, bajular, dizer-lhe o que achavam que ele tinha feito. “Eu só faço”.
Benite fazia, fazia tanto. E, ao fazer, os outros faziam com ele. Benite confiava. “Claro que confio. Mas vigio”, disse-me. Devo-lhe tanto, como cidadão sobretudo. Devo-lhe ter-me ajudado a pensar, a ter no confronto de ideias uma forma de avançar, a saber que a impetuosidade tem que ser canalizada para outros propósitos, e a usar uma raiva, por vezes canina, de quem se entusiasma, uma coisa Shakespereana, de sangue que escorre dos cantos da boca e que é só adrenalina, que nada têm de vingança.
E devo-lhe ainda aprender a saber o que é confiança. Em Março de 2007, tinha começado a fazer a revista OBSCENA, então apenas com duas edições, e fui a Almada, acompanhado do Miguel-Pedro Quadrio, então a escrever no Diário de Notícias e próximo da Companhia de Teatro de Almada, e ouvi-me dizer-lhe que queria fazer com o Festival de Teatro de Almada o mesmo que o Le Monde fazia com o Festival d’Automne. Ou seja, um suplemento especial dedicado ao festival, na edição que sairía no fim de Junho. Ele não me conhecia. Ou conhecia-me mal. Tinha-me lido – “eu leio tudo” -, sabia que já há dois anos, pelo menos, no blogue que tinha, O Melhor Anjo, havia começado, com o Pedro Manuel a cobrir o festival. E agora isto. E o que eu queria era apenas ter a informação dos espectáculos antecipadamente. Não tinha exactamente um plano de acção. E ele, por seu lado, não tinha nada que me passar uma programação que, a essa altura, estava longe de estar definida. E então perguntou-me que tiragem ia ter. E eu disse que nenhuma, que era tudo online, que não tinha dinheiro. E ele disse que pagava a impressão. E eu disse que não fazia sentido pagar a impressão do suplemento e ter a revista online, que nem era isso que me importava. E ele disse que não tinha percebido, que ele pagaria a edição toda. E foi assim, na esplanada do Teatro Municipal de Almada, naquela mesa de canto logo quando se entra na primeira porta, eu de pé e ele sentado, ali, com um aperto de mão, que o Joaquim me ensinou que era sempre possível.
Só voltámos a falar da revista quando ele a viu. Elogiou-a. Estava tão contente. E logo ali, na viagem de barco que era também a apresentação do festival, lançou-a ele mesmo, como se fosse um projecto dele, porque era. E ainda a edição desse ano do festival não tinha começado e ele já me estava a dizer que para o ano faríamos outra vez. Voltámos a fazê-lo. No ano seguinte e todos os anos até a revista acabar. E ele a levá-la para os festivais e a apresentar-me aos programadores e aos encenadores e aos autores e aos actores, e a fazer elogios e a dizer sempre que se sentia tão orgulhoso. Voltámos a fazer no ano seguinte e nos outros todos, e ele nunca me perguntou o que é que ia ser tratado, com que prioridade ou espaço. Chamava-me para a apresentar no encontro com o público na Casa da Cerca, abria as portas da livraria para uma exposição que não sabia o que era, com as fotografias do Martim Ramos e a concepção da Pixel Reply, achava que o cão de louça que tínhamos posto no foyer do teatro era uma homenagem ao cão dele que tinha morrido e que dançava quando ele chegava a casa, e eu não lhe dizia que não. E depois dizia-me para ir ver um espectáculo, e depois de eu ter dito que não tinha gostado nada, ele dizia-me que também, mas que não estava ali para programar só o que gostava. E ríamos muito.
E foi sempre assim. De uma generosidade que tem tudo a ver com respeito, com honestidade. Muito com estratégia, com partilha de responsabilidades, com sentido de dever, com desejo de intervenção. Com vontade de mudança. Do Joaquim pode dizer-se, como se pode dizer de poucos, que os meios justificavam os fins.
Um dia fui entrevistá-lo. Ele disse, a brincar. “Agora é a sério? Já dissemos tudo. Mas já não era sem tempo”. E depois não gostou do título que demos ao texto sobre o festival: “Um festival com perfil marxista”. Ligou-me: “marxista, eu? Eu sempre fui contra todas as escolas, eu nunca coube em coisa nenhuma, marxista eu, epá, porra pá, porra, se não gostasse tanto de ti, mas foda-se, marxista?”. Mas quando, um ano depois, o meu telefone tocou, estava no palco da Église des Celestins, em Avignon, estavam a cantar-me os parabéns porque fazia anos nesse dia, era o Joaquim, do outro lado, felicíssimo, porque o júri do Prémio Internacional de Jornalismo Carlos Porto havia decidido que esse trabalho era merecedor de distinção. E ele disse-me “Agora não vais recusar, pois não?”. É que, dois anos antes, quando o mesmo prémio decidiu entregar uma menção honrosa a uma das edições da OBSCENA dedicadas ao festival, eu achei, que uma vez que o Festival havia pago parte da edição, eu não deveria aceitar. Meteu-se o protocolo da Câmara Municipal de ALmada ao barulho, abriu-se uma crise que seria embaraçosa para todos e ele disse-me “para me deixar de merdas, que os escrúpulos eram para quem não fazia nada”. E então eu disse-lhe, ali no palco de Avignon, que não ia recusar, “não podes”, disse-me ele. E eu, provocador: “ganhei com um texto que tu nem gostas, o texto marxista”. E ele responde, “só fico ainda mais contente, pá, nunca percebeste”.
Nunca percebi. Nem sempre percebi o Joaquim. Às vezes dizia que sim, que é o que devem fazer as pessoas educadas quando sabem menos mas não podem desiludir. Que é o que fazem os amigos quando percebem que os amigos se enganaram, se entusiasmaram, se atropelaram, quando é óbvio que nos querem convencer pela força do argumento ou pela ilusão desse mesmo aregumento. Aconteceu tantas vezes com ele, mas certamente menos vezes do que as vezes em que ele me disse que sim. E, nesse jogo que foi sempre um jogo mental dos mais estimulantes, nunca houve desonestidade, houve sempre aprendizagem. Houve sempre respeito e partilha. Houve sempre coragem.
Vou lembrar-me do Joaquim de cada vez que entrar no Teatro Municipal de Almada. E vou lembrar-me sempre do Joaquim Benite porque tantas coisas, tantos livros, tantos espectáculos, tantos textos, tantos nomes, tantas cidades, tantas viagens e tantas horas sentadas a conversar, a pensar, a debater, a reagir à vida, não cabem num só texto nem num só pensamento. Vou lembrar-me, e agradecer ter sido seu contemporâneo, porque cada gesto que faço, nessa ideia do teatro como modo de pensar o mundo, tem uma parte que lhe pertence. E é por isto que tenho que aprender a conjugar a palavra “tu”. Joaquim.