São os últimos momentos do ano da coreógrafa belga Anne Teresa de Keersmaeker enquanto artista da cidade, um convite que lhe foi endereçado por Lisboa e que, desde Fevereiro, juntou o Centro Cultural de Belém, o Alkantara Festival, a Culturgest, as Festas na Cidade, o Festival Temps d”Images, a Companhia Nacional de Bailado, a Fundação Calouste Gulbenkian e, agora, os teatros municipais São Luiz e Maria Matos.
E os dois últimos espectáculos fecham uma janela sobre o prazer de quem descobriu na dança uma forma de falar, mais do que se expressar. Trazendo do corpo as palavras e fazendo dos gestos as acções, 2012 foi um ano que nos mostrou porque é que Anne Teresa de Keersmaeker é a ponte que faltava, a legítima ponte entre um mundo que revelou a intensidade do intérprete dentro de um movimento e a estreita colaboração entre a forma e o conteúdo.
The Song (23 e 24 de Novembro, Maria Matos), de 2009, é um extraordinário momento na obra da coreógrafa. No início, as suas peças ficaram marcadas, mesmo que inadvertidamente, por um discurso no feminino porque a coreógrafa considerava não saber, por não conhecer, o modo como o corpo masculino poderia responder a emoções. Vimo-las no CCB, sob o título integrador Early Works, e percebemos, então, que aquilo de que De Keersmaeker falava era, na verdade, da ideia de corpo uno. Talvez tenha sido uma questão de tempo até a própria coreógrafa perceber que nunca havia desenhado um corpo feminino em oposição a um corpo masculino. Grosse Fugue, peça do final dos anos 1990, que a Companhia Nacional de Bailado tão bem remontou, mostra, precisamente, esse alegado equívoco. The Song é uma outra forma de entrar dentro desse corpo. Um olhar mais filigrânico, mais distanciado porque mais especulativo, menos cínico, quase delicado. O facto de ter sido pensado com, e para, os corpos dos alunos da escola PARTS, que a coreógrafa criou em Bruxelas, mostra também como o movimento de De Keersmaeker se tornou na materialização clara das transformações propostas pela arte no seio de uma Europa em construção. É uma peça profundamente urbana, consciente da falibilidade do centro, ansiosa pelas margens, uma peça convulsa, hipnótica, irresistível.
No São Luiz, por seu lado, Drumming (29 e 30 Novembro) é um momento de festa. A partir de composições de Steve Reich, os corpos livres, numa festa por vezes paródica (e como é bom ver De Keersmaeker rir), outras tantas grave (e a coreógrafa é um dos melhores exemplos para falar do conflito entre discurso e acção), descobrem um meio para desenvolverem um movimento amplo, generoso, intensamente poético. Mas tão, tão assertivo. Uma peça histórica.
The Song
Drumming
reveja todo o programa aqui:
Perfil da coreógrafa
Early Works (CCB – texto referente a Rosas Danst Rosas, uma das 4 peças, aquando da apresentação em 2011 em Guimarães)
En Attendant (Culturgest/Alkantara Festival)
Cesena (CCB, Teatro Camões/Alkantara Festival)
CNB dança ATDK: Anatomia de um movimento (Teatro Camões, TNSJ)
3Abschied (Fundação Calouste Gulbenkian/Teatro maria Matos)
texto publicado na revista 2 (18 Novembro 2012)