A arte de desaparecer
O verdadeiro coup de Coeur do festival, como se diz quando se gosta muito, terá que ser Tragédie, do coreógrafo francês Olivier Dubois. Se não, como explicar que, coisa rara, tenha tido vontade de o ver três vezes?
A peça, parte três de uma trilogia que começou com Revolution (2010), seguiu com Rouge (2011) é um exercício de composição notável assinado por um coreógrafo que sabe bem as referências que está a usar e, por isso, as gere, tritura e devolve, com o humor, a inteligência e a sageza que só uma imensa inspiração e imaginação podem criar.
Os dezoito bailarinos – saídos de uma audição à qual se apresentaram 1200 candidatos – , nove homens e nove mulheres, estão em palco durante uma hora e meia a fazer, aparentemente, nada. Andam, andam muito, cruzam o palco, repetem a mesma frase, depois o mesmo parágrafo de movimento, depois tudo e a seguir o seu contrário, num jogo de acumulação onde, de modo absolutamente imprevisível, nos ganham a confiança e a cumplicidade para jamais os abandonarmos.
Os seus rostos esfíngicos que, ao longo da peça, se vão modulando e, também eles cedendo à energia de conjunto, fitam-nos como se vivessem de certezas inadiáveis.
O nihilismo da peça, que vai, precisamente, buscar a Nietzsche a inspirição, coloca aqueles corpos nus num torpor crescendo, seguindo uma estrutura marcada compassadamente, que os bailarinos executam com uma justeza a todos os títulos admirável. Depressa a nudez deixa de ser uma questão, tal como não se aguenta como questão a normatividade dos corpos, em oposição à rapariga mais forte, e menos ainda a ideia de que o movimento que executam tem por objectivo – se algum objectivo existir em qualquer movimento que seja – uma “simples” derrisão desse mesmo movimento.
O apagamento sugerido por Olivier Dubois pisca o olho às obras colectivas marcadas a passo de Maguy Marin, ao abandono de uma noção de individual como em Anne Teresa de Keersmaeker, às construções ambiguamente geométricas de Maurice Béjart, à utopia do movimento de Pina Bausch e à livre associação de Merce Cunningham. Tudo isto existe a par de um trabalho de construção coreográfico que é capaz de, na mesma frase, ir de Sagração da Primavera a Lord of the Dance, com a mesma seriedade e sem a graça do efeito que poderíamos prever.
A hipnose sugerida pelo movimento dos bailarinos que, primeiro, entram e saem do palco em marcha recta sem cessar e, depois, vão acumulando variações sobre essa mesma marcha até se tornarem numa mesma massa, composta por um conjunto de corpos que se decompõem, faz com que seja o próprio espectador a abandonar-se em palco.
A pulsão daqueles corpos, o jogo de cumplicidades entre os intérpretes, a tensão que se vai instalando, faz abandonar qualquer perpectiva de redenção dos corpos, como se, provando afinal que Nietzsche tinha razão quando falava da dança como material inflamável e irredutivelmente mais perto da utopia.