Há já muito tempo que a coreógrafa Né Barros (Porto, n. 1963) vem perseguindo um modo de pensar, e mostrar, a vida interna de um movimento. Como nasce e como morre mas, sobretudo, como passa de um estado a outro. Ou seja, como deixa de ser uma ideia, se transforma numa imagem e volta a ser ideia. “Agarrar o que é efémero”, diz-nos a coreógrafa que no próximo sábado, 30, mostra a sua mais recente criação, Estrangeiros, no Teatro Ribeiro da Conceição, em Lamego.
A peça, que se estreou a 29 de Janeiro no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, é interpretada por Bruno Senune, Flávio Rodrigues, Joana Castro, Pedro Rosa (movimento), Alexandre Soares e Jorge Queijo (música) e João Martinho Moura (arte digital), e problematiza “a fractura entre o ser e o estar” que, no trabalho de Né Barros, representa uma dedicada investigação sobre a imagem e a identidade da própria dança.
“O que pode ser um corpo dançante?”, pergunta a coreógrafa que, nesta peça, joga com a ideia de movimento em três planos. O dos bailarinos, no centro do palco, o dos músicos, ao fundo e o da arte digital, projectada. O que vai sendo desenvolvido em Estrangeiros é essa condição de absurdo, onde “o movimento irrompe” num “padrão que não existe”, que é “muito efémero”. É o caos interior que vai tornando impassível cada rosto. Né Barros, procedendo a um progressivo apagamento das fronteiras entre corpo, música e digital, transforma a massa que daí surge numa espécie de toada, por vezes hipnotizante, outras sublinhando as diferenças de composição de uma mesma imagem.
Os corpos dos bailarinos, nessa “procura da identidade”, são um território onde se projectam memórias, recolhidas ao longo da própria coreografia e, de modo mais explícito, no desenho que se vai fazendo, através do trabalho digital, dos “espaços que ficam” entre os movimentos. “Eu gosto de trabalhar a partir do formalismo do movimento”, diz, prolongando esse interesse por uma coreografia que vai criando problemas a si mesma, através de um registo de alienação colectiva. Escreve Né Barros no programa da peça: “Aparentemente carregados de identidade definida, os estrangeiros são, afinal, figuras transversais esvaziadas. No seu diferir, estas figuras são deslocações ora de clichés de identificação ora de estranhezas genuínas comportamentais.”
Texto publicado na revista 2 a 24 de Junho