“A república está em coma”. Foi com esta frase que cerca de 50 artistas tunisinos subiram ao palco do El Teatro, um espaço independente em Tunes, capital da Tunísia, no início de 2011. Estávamos, então, num momento fundamental daquela que seria depois conhecida como Primavera Árabe. Os artistas, ultrapassando receios comuns de censura e prisão, reagiam ao que se passava nas ruas, exigindo mudanças concretas. O regime cairia pouco depois e, na altura, através de canções pacíficas ou da leitura de textos dramáticos, os artistas queriam alertar a comunidade internacional para o que o regime de Ben Ali estava a fazer à população tunisina.
Meses depois, quando o encenador Fadhel Jahibi começou uma fase mais intensa da digressão da peça Yahia Yaïchi (que passou há um ano no Festival de Almada), o ditador já tinha caído e o espectáculo, que prenunciava a queda de um outro ditador, com semelhanças em tudo evidentes a Ben Ali, tornara-se rapidamente datado. Que sentido faria a apresentação de uma peça que driblava a censura para poder destapar anos de opressão quando nas ruas as pessoas já cantavam por um novo país? Quando o espectáculo passou pelo Festival de Avignon, dias depois de o vermos em Almada, um espectador perguntou ao mítico encenador tunisino se fazia sentido fazer teatro quando a revolução estava na rua. Jahibi vacilou e respondeu que o seu teatro nunca tinha deixado de estar na rua – mas a rua de que falava estava longe, disseram-lhe.
Flashback para 2007 e para um programa de debates organizado em Paris durante o Festival d”Automne, onde um conjunto de artistas suficientemente (auto-)representativos para poderem falar em nome de uma cena artística do Médio Oriente e do Norte de África – entre eles, Lina Saneh e Rabih Mhroué (Beirute), Omar Amiralay (Damasco) ou Hassan Khan (Cairo) – desenhava as linhas principais de um teatro de intervenção. Não se esclarecia, contudo, se essa intervenção respondia ao desejo de expiação da Europa ou a uma efectiva demolição dos códigos de construção narrativa sujeitos à censura. O objectivo era densificar uma discussão sobre o modo como à criação artística se imputava a responsabilidade não apenas de alerta mas sobretudo de reescrita da História. Como se a criação artística, sobretudo em contexto de guerra, não pudesse demitir-se da sua responsabilidade de garante de um equilíbrio entre o que se passa e o que se pretende. O resultado dos debates foi previsível: pedidos de mais apoio e de mais pressão da comunidade internacional, deslocação de artistas locais para o centro da Europa, aproximação entre os discursos integrados e os que ainda eram exóticos ou garantiam quotas de multiculturalismo.
Mas isto foi em 2007, quando no horizonte não se imaginava, apesar de se desejar, que a democracia como a defendemos no Ocidente chegasse aquela parte do mundo. Resta perceber se na nossa ideia de democracia cabe a possibilidade de Deus ter um partido, como acontece “lá”.
Não se pode pensar a criação local sem se ter em conta que ela é também o resultado do olhar expectante de quem está de fora. O modo como olhamos para os espectáculos do Norte de África e do Médio Oriente está também ele em profunda transformação. Um exemplo: em 2011, o encenador e dramaturgo iraniano Amir Reza Khoestani (que vimos em Lisboa em 2005 com Dance on Glasses, no Centro Cultural de Belém) apresentou a peça Where were you on January 8th?, onde, através de conversas cruzadas de telemóveis, sugeria um trabalho sobre os limites da censura. Era uma peça mais implícita do que explícita e dos casos, raros, em que a realidade moldava a ficção: permitia-se um jogo de projecções nos discursos das personagens e destas para uma realidade ainda por reconhecer.
Recentemente, a revista francesa Mouvement dava conta da dependência dos circuitos de programação de festivais e teatros em relação a peças que alimentem um discurso que sirva os princípios de manutenção de uma supremacia crítica. Ao longo dos anos a apresentação de espectáculos foi vista como um gesto de solidariedade, um combate resistente, uma janela aberta para o diálogo. Muitas vezes, os próprios espectáculos eram apresentados com o objectivo de cumprirem uma agenda de intervenção que extravasava a própria apresentação e era, demasiadas vezes, abertamente política. Voltamos constantemente a França e não é por acaso. Nos últimos dez a 15 anos o país investiu, através dos seus centros culturais, na formação, produção e circulação de artistas do Magrebe.
Hoje, um ano depois da Primavera Árabe, existem muito menos espectáculos vindos dessa região a circular do que há um ou dois anos. Como se a distância criada pelo filtro da ficção fosse incompatível com o desejo de intervenção no momento. Não espanta que encenadores e coreógrafos, dramaturgos e programadores digam que o verdadeiro teatro acontece nas ruas. E isso coloca um problema no olhar que a Europa tem sobre a realidade e sobre o discurso artístico. Esperamos que as peças possam mostrar o modo como os artistas estão a escrever, e não só a descrever, a situação. E pelo tempo em que os espectáculos possam voltar a usar a ficção para falar da realidade.
Texto publicado no Ípsilon a 22 de Junho a propósito do programa Proximo Futuro