Ao olharmos para o trabalho de quase 15 anos que foi recolhido em Todos os Fantasmas Usam Botas Pretas, percebemos melhor por que é que das fotografias de cena de João Tuna (Portalegre, 1967) nunca pudemos dizer tratarem-se, apenas, de um registo documental dos espectáculos que o Teatro Nacional São João, no Porto (TNSJ) apresentou. A passagem do tempo revela, afinal, um olhar crítico sobre os próprios espectáculos e, através dele, um outro modo de cruzar narrativas (reais, portanto) e dramaturgias (ficcionais, afinal), materializadas em momentos que foram, afinal, pensados como epicentro de um diálogo com o espaço, o tempo e o modo que os circundava.
O encenador Ricardo Pais — sobre cujo período de direcção do TNSJ se ocupa este livro 1996-2009 (design João Bicker, edição TNSJ) — fala, num dos textos que acompanham a edição, de um “programa ético para dentro e para fora do espaço cénico” e numa “transgressão estética” pulverizada por Tuna nos materiais que “pretensamente documenta”.
É esta ambiguidade que de um modo muito feliz encontra forma nas palavras-chave que dividem o livro — Rastros, Vapores, Geometrias, Figurantes — que Tuna tem vindo a procurar, em fotografias que revelam a sua condição de corpo estranho, mas tão familiar, nos processos de criação dos espectáculos. O que estas fotografias revelam, na coerência de um olhar permanentemente em busca — questionando, não se satisfazendo, duvidando —, é a incessante aproximação ao olhar de quem encena. Como se a identificação de um ponto de vista fosse essencial para a própria fuga a esse condicionamento.
A João Tuna, formado em cinema, pareceu interessar sempre aquilo a que John Havelda, num outro texto, fala da condição natural de um espectáculo: “Não obstante o esforço do encenador para dirigir o olhar da audiência, um espectáculo nunca é único e singular.” E, “se a fotografia fixa um momento fugaz”, continua Havelda, “os melhores trabalhos de Tuna não serão cristalizações de imagens como cartografias de tensões”. Por tudo isso, este livro pode (e deveria) ser lido — realmente lido — em estreito diálogo com a biografia de Ricardo Pais Actos e Variedades (Paulo Eduardo Carvalho, Campo das Letras, 2006), no que os dois guardam de diferentes modos de materalização de um discurso criativo, um (o de P.E.C.), dando forma ao olhar, outro (o de Tuna), devolvendo-lhes a vida.
texto publicado na revista 2 do jornal PÚBLICO a 24 de Junho