Estava tudo no verso do refrão da canção com que a cerimónia dos Tony Awards abriu. E se a vida fosse mais como no teatro? Pessoas a interromperem os pensamentos com canções, cenários que desapareciam e personagens que iam com ela, um conjunto de falsos amigos para sublinhar as nossas ideias e todos com corpos tão perfeitos que poderiam aguentar horas de sapateado sem pestanejar. Se a vida fosse mais como o teatro, would suck so much. Ou seja, em tradução livre, seria uma trampa.
E, no entanto, olhamos para a lista de vencedores da cerimónia de domingo dos Prémios Tony e não é apenas a vida a querer ser mais teatral, é o teatro a não conseguir escapar à realidade mas a precisar de ir ao passado para falar dela. “Newsies” (dois prémios em oito) é sobre uma greve de ardinas em 1899, “A Morte de um caixeiro viajante” (dois em sete) sobre a crise económica no pós-Segunda Guerra Mundial, “Porgy and Bess” (dois em dez) sobre a segregação racial, “Once” (oito em 11) sobre a falta de oportunidades num país desenvolvido. Não são temas fáceis e, no entanto, o estado pelo qual o mundo passa parece criar brechas que permitem uma relação atemporal com os temas, cíclicos naturalmente mas, agora, parecendo premonitórios.
O caso mais paradigmático talvez seja o das remontagens. “A Morte de um caixeiro viajante”, de Arthur Miller, foi estreado em 1949, com encenação de Elia Kazan, e na altura recebeu o Tony para melhor peça. É a terceira remontagem da peça que recebe o Tony – as outras duas foram em 1984 e 1999. E, para melhor musical, “Porgy and Bess”, de Gershwin, estreado em 1935, é exemplo paradigmático da história subterrânea da comunidade afro-americana. Dois exemplos, saídos de períodos de grande depressão, que agora regressam, revelando também o modo como, ao contrário do que Wagner preconizava sobre a necessidade de criar uma arte para a revolução, não é possível encontrar peças actuais que possam responder ao que se anda a discutir.
E isso tem tudo a ver com o facto de os Tony não serem apenas um prémio de prestígio, mas um barómetro com efeitos directos na produção teatral nova-iorquina. As peças que não conseguem ser nomeadas vêem as suas carreiras encurtadas quando não mesmo simplesmente interrompidas, os produtores dos espectáculos procuram todas as formas de tentar que a produção da gala inclua números das suas peças de modo a poderem ter publicidade gratuita. E a recepção fria da plateia a três dos momentos – “Evita”, com Ricky Martin; “Jesus Cristo Superstar”, em versão pós-pop-glam-rock; “Hairspray”, passado num cruzeiro cheio de product placement – é disso bom exemplo.
E não receber um prémio, ou ver premiadas produções que apontam para revisitações, diz também muito sobre uma máquina que não é apenas de entretenimento. É uma máquina que move milhões de dólares, que é essencial para a captação de turistas e para o desenvolvimento do teatro a nível local, longe dos holofotes do mediatismo da Broadway. E isto tem a ver com o modo como o teatro e, em particular o teatro musical, é mais do que entretenimento. É um agregador de referências, um catalisador de modas e um veículo para testar a capacidade de relação do espectador contemporâneo com o espectáculo de teatro enquanto disciplina. Não é por acaso que o apresentador da cerimónia se prestou a descer como se fosse o Homem Aranha, fazendo alusão ao mais complexo dos musicais da história recente do musical (atrasos, acidentes, substituição da direcção e um quase flop não fosse o merchandising).
Que importância é que tudo isto tem? Na quinta-feira, a coreógrafa Anne Teresa de Keersmaeker disse, na apresentação de um livro sobre o seu trabalho no São Luiz, durante o Alkantara Festival, em Lisboa, que quando foi para Nova Iorque, no início dos anos 80, o lugar onde mais aprendeu sobre tempo, espaço e corpo foi a ver musicais. Acham que foi por acaso que a Beyoncé a foi copiar?