Dood Paard no Alkantara Festival

 O colectivo Dood Paard regressa a Lisboa com uma encenação de Othello de Shakespeare. Mas o que mostram é o racismo e a inveja que hoje invadem a Europa. A peça está neste domingo e segunda, no Maria Matos.

 

Dois actores, um deles de cara pintada, outro usando uma longa peruca, num estreito estrado de madeira a olharem um para o outro e depois para nós. Shakespeare, dizem. Othello, a tragédia do Mouro de Veneza, vista como metáfora para falar do outro, do estrangeiro, numa Europa que discute as fronteiras, as quotas para imigrantes e a tensão racial que existe entre as diferentes comunidades que, desde há décadas, vinham construindo aquilo a que gostamos de chamar já não identidade europeia mas um processo de aculturação bem-sucedido.

Othello é conhecido como “o mouro de Veneza” mas, explica Giuseppe Tomasi di Lampedusa no ensaio “Shakespeare” (editado em português numa excelente tradução de José Colaço Barreiros), isso deriva de um mal entendido que “se viu afectado por uma luz racial derivada de uma má tradução inglesas das novelas italianas de que Shakespeare o extraiu”. O Moro di Venezia [Mouro de Veneza] não é de modo nenhum um mouro, mas sim um senhor Moro, apelido extremamente comum no território bergamasco. Shakespeare engoliu totalmente a patranha livresca e logo desde as primeiras tiradas (precisamente a partir do verso 66 da primeiro cena do I acto) Otelo é já apontado como ‘o negro dos lábios túrgidos’”.

Este equívoco serve bem de chave para olharmos para Othello (bye, bye), a peça que os Dood Paard trazem ao Alkantara Festival (domingo 3, e segunda-feira, 4, às 19h, no Maria Matos) como um exercício teatral que, partindo do texto de Shakespeare, escrito em 1603, quer chegar a um olhar sobre a Europa actual.

Para o colectivo holandês, que de Shakespeare já fez outras tragédias (Titus, Coriolano, Tróilo e Créssida e um Shakeaspeare Stock), e nos últimos anos se tem dedicado a reflectir sobre “o outro”, “o estrangeiro”, como assim era chamado Othello, o mouro de Veneza (recordemos, de passagem, Medeia, de Eurípides, apresentada no Alkantara em 2010, e The Jew, no Maria Matos no ano passado, co-produção com a Mundo Perfeito), olhar para o conflito racial e político que opôs Othello a Iago é olhar para os homens da Europa. Os que cá estão e os que chegam. “Há uma ideia de posse quando se chega à Europa, que tem tudo a ver com o poder”, diz Gillis Biesheuvel, um dos três actores que compõe o total dos corpos, das personagens e das ideias desta leitura muito pouco ortodoxa do texto de Shakespeare. Entre eles Chaïb Massaoudi, precisamente marroquino de origem e técnico do espectáculo que, estando de fora do palco, simboliza aquele que ajuda, que quer entrar, que é olhado de lado.

Othello (bye, bye) é um retrato, por vezes pícaro, por vezes trágico daquela que é, para citarmos Giuseppe Tomasi di Lampedusa, “se quisermos mesmo abandonar-nos a este mesquinho jogo de avaliar em gramas o peso dos dinossáurios”, a menor das quatro tragédias de Shakespeare. É Lampedusa quem conclui que seria Othello “a obra de Shakespeare que mais se prestaria a uma encenação com trajes modernos”, situação com a qual “só teria a ganhar”. “Seria evidentemente transformada, se fosse mostrada como a sórdida intriga de guarnição colonial que é”.

Esta dimensão conflui na leitura do colectivo holandês. Diz Biesheuvel: “É uma Europa muito diferente aquela que temos hoje, mas permanecem sentimentos de posse que são intemporais”, diz. E é aqui que a ideia de comunidade, que os Dood Paard desde sempre tentaram replicar nos seus espectáculos invade o discurso teatral. Especialmente em Othelo, explica: “Há um desejo de protecção da comunidade na Europa que se esquece que somos feitos do encontro, e do acrescento, de outros, de outras comunidades”. “É preciso recuperar essa ideia”. “A Europa foi sempre um lugar de encontro para os que eram estrangeiros. Nos anos 1970 precisávamos deles, e por isso, nas duas décadas que se seguiram, aceitámo-los. Dormimos com eles, achávamo-nos liberais. Mas agora estamos a regredir. E o que isso mostra é que nem sempre fomos tão abertos como dissemos que eramos”, reflecte. “Voltámos atrás. Voltámos ao que sempre fomos”. Em Othello “como em qualquer outra obra de Shakespeare”, diz Lampedusa, “não existe nenhuma personagem-símbolo: há só um certo número de homens e de mulheres que sofrem, que se debatem e morrem, como todos nós”.

O estatuto de Iago, o ciumento vilão que ambiciona destruir Othello está, para os Dood Paard, como exemplo do modo como nos transformámos em proteccionistas em vez de integradores. “É o ciúme que o leva a querer demolir Othello”, explica, para falar do ciúme que Iago sente por Desdémona estar nos braços do mouro. A inveja e o ciúme traem Iago e dominam-lhe o destino. Para o colectivo Dood Paard a ameaça que o outro pode representar é o modo como reflectem sobre a sociedade contemporânea. E o teatro, no meio disso tudo, “um jogo que se vai desfazendo à vista de todos”.

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