Sofia Dias e Vitor Roriz mostram hoje (último dia), no Centro Cultural de Belém, Fora de qualquer presente. João Fiadeiro e Fernanda Eugénio estão hoje e amanhã na Culturgest com Secalharidade.
Tempo e acção. Espaço e memória. Encontro e caminho. Será assim, a partir destes binómios, que as duas peças que o Alkantara Festival hoje apresenta em estreia mundial irão trabalhar. Fora de Qualquer Presente, da dupla Sofia Dias e Vítor Roriz (19h, Centro Cultural de Belém, até amanhã), e Secalharidade, de João Fiadeiro em colaboração com a antropóloga brasileira Fernanda Eugénio (21h30, Culturgest, até domingo), marcam o fim-de-semana em que o festival será visitado por comitivas de programadores estrangeiros, interessados em perceber o que anda a mexer na dança portuguesa.
Para os coreógrafos, que falaram anteontem com o PÚBLICO no fim dos respectivos ensaios, cada um dos espectáculos parte de uma ideia de encontro e de confronto, onde a acção que daí resulta sugere a criação de imagens, físicas, sonoras e, algumas delas, da ordem do imaterial. E onde cada uma das peças procura entender o modo como uma acção, um movimento, pode ocupar um espaço e, nesse espaço, estabelecer a sua própria estratégia de desenvolvimento. Em Secalharidade, Fiadeiro e Eugénio desenvolvem acções jogando com as imagens produzidas pela palavra (escrita, dita, construída), e as imagens sugeridas pela presença de corpos que são, eles mesmos, motores de activação dessas palavras. Em Fora de Qualquer Presente, Sofia Dias e Vítor Roriz ampliam um diálogo em que o movimento e o som se comportam como entes mutantes, mais do que orgânicos, sugerindo uma partitura coreográfica a partir de um encontro forçado entre aquilo a que chamam “corpos estranhos”.
A peça de Sofia Dias e Vítor Roriz é a primeira desde que receberam, no ano passado, o prémio Jardin d”Europe, atribuído em Bucareste, na Roménia, por um júri de críticos internacionais à peça Um Gesto Que não Passa de Uma Ameaça. A distinção, uma das mais relevantes para a jovem criação contemporânea na área da dança, destaca um trabalho que parte da “degeneração da palavra e da imagem”. Diz Sofia Dias que um dos pontos de partida desta nova peça foi, precisamente, o desejo de “fazer articular coisas muito diferentes entre si”, sugerindo, assim, um movimento que nascesse do que não era orgânico. Vítor Roriz fala do potencial que existe no “encaixe forçado” de elementos trabalhados, em pormenor, pela voz, o corpo e as imagens, aqui aparecendo numa tela cheia de fotografias recompostas. Terá tudo a ver com “ideia de interrupção e de fragmento”, explicam, e uma procura de um estado que interrogue “como é possível suportar esse confronto entre materiais”.
Fiadeiro, que regressa à Culturgest, e ao Alkantara, depois de Para onde Vai a Luz quando se Apaga? (2008), fala da importância do tempo numa peça que pede ao espectador que escolha, logo no momento em que lhe é cortado o bilhete. O que a seguir se passa sugere uma narrativa a partir de acções sujeitas à pressão do próprio tempo e do desejo de diálogo com o outro. “O trabalho foca-se na ideia de reparar e, por isso, estar sensível às coisas”, explica. “Reparar obriga a parar para reparar outra vez e isso faz com que o tempo encontre o seu próprio espaço.” Fiadeiro desenvolve há anos um método de trabalho centrado na acção, o Método de Composição em Tempo Real, que agora estuda o modo como a acção fará tanto mais sentido quanto se deixar permeabilizar pela “profunda convicção de que se não nos deixarmos apanhar e levar pelo tempo não haverá encontro”.
Qualquer coisa que aconteça fora dessa temporalidade, acredita o coreógrafo, “não passa de uma imagem de uma relação e de um encontro, que acabou antes de começar”. E isso Fiadeiro entende como uma conquista relativamente aos trabalhos anteriores e, poderá também dizer-se, a um conjunto de outras peças que se subtraem a uma exposição que contemple a falha: “É preciso abandonar esta espécie de arrogância, ou prepotência que permanece no uso da blackbox, e dar um maior uso às coisas.”
Texto publicado na edição de 1 de Junho do jornal PÚBLICO