Mónica Calle regressa hoje ao texto do crime, A Virgem Doida, a peça que a lançou como actriz e a construiu como referência. Sem nostalgia, o receio é o mesmo: como descobrir o que é a liberdade?
O que significa regressar “ao momento inicial”, a esse momento onde a pergunta mais evidente, “a única pergunta possível”, era “porque estou a fazer isto?”? Vinte anos depois, a actriz e encenadora Mónica Calle, agora com 45 anos, regressa a A Virgem Doida, momento inaugural do teatro contemporâneo português, momento de ruptura de uma geração que experimentara com os mestres o que queria fazer por si.
Numa esquina do Cais do Sodré, em Lisboa, bairro de má fama – hoje tornado de peregrinação cool –, infestado de prostitutas, marinheiros e sexo ao quarto de hora, uma mulher a dizer um texto para quem a for ver, a noite toda a partir das 21h. Hoje, como à época, entrando na antiga loja de ferragens ou ficando à porta, a noite toda a ver “umstrip-tease convincente, embora a Mónica o reduza ao manual-base dos gestos”, nas palavras de Fernando Assis Pacheco no jornal Sete da altura.
Há a memória da actriz e aquela que os jornais guardam. Assim, por exemplo, pela voz da própria: “No segundo dia do espectáculo, um sábado, à última sessão vieram dois homens que eram voyeurs, e houve um que se sentou ali, que tinha uma prótese numa perna, e que mal se sentou desapertou a braguilha. Fiquei assim um bocado à toa, mas depois comecei a fazer o espectáculo todo para ele. Também só estavam duas pessoas. Para ele e para o outro, mas principalmente para ele.”
Não era isso que era difícil. Aos 25 anos, dizia Calle sobre a primeira peça de muitas feitas à flor da pele: “O único momento em que me custa estar nua é quando canto a canção do Antonio Machín no fim. No resto do tempo, não: há muitas coisas que estão a acontecer, há emoções que estão em jogo, o despir acaba por não ser importante.”
Estava (e ainda está) em jogo uma relação estreita entre a vida e o teatro que Calle demorou anos a impor, e que muitos se aperceberam muito mais tarde, deixando que o seu teatro se mantivesse secreto, íntimo, pessoal. E, por isso mesmo, livre. Diz-nos Calle hoje, madrugada dentro, a música dos novos bares lá fora e, na Casa Conveniente, ruas ao lado da antiga, iluminada a focos de luz que lhe vão servindo de pele e de roupa ao longo de todo o espectáculo: “Só faz sentido regressar a isto, se me sentir, outra vez, livre.”
Calle falou sempre de liberdade. Mas talvez não soubesse que com A Virgem Doida, na altura encenada por Amadeu Neves, aquilo de que iria falar nos 20 anos seguintes seria de liberdade. Do seu corpo e, por isso mesmo, do teatro enquanto coisa viva.
Coisa é, aqui, palavra-chave até para entender os poemas de Rimbaud, cravados no imaginário colectivo, como a peça de Calle, através da tradução do poeta Mário Cesariny. “A tradução tem coisas muito estranhas, há um ritmo, uma palpitação, uma cadência que, na dificuldade de traduzir, o leva a escrever sobre estes poemas.”
A ideia de “sobre” é aquilo que Cesariny apelidava de “cabala fonética”. “Escrever sobre” era escrever em cima desses poemas, a partir deles, dentro deles. Calle diz que “a palavra escrita, muito clara no papel, no significado e na escolha, quando dita em voz alta, ganha duplos ou triplos sentidos”. E são esses sentidos, “esses jogos de palavras que se podem transformar em vários outros conjuntos de significados, que abrem, estão sempre a abrir pistas”. “Uma tradução faz-se de escolhas”. Como uma encenação. E a vida.
Aos 25, Mónica Calle estava mais perto do que hoje estará do que Rimbaud disse quando escreveu A Virgem Doida aos 18 anos. “Hoje entro muito mais dentro da complexidade da sua poesia. A compreensão do texto surge-me de forma intuitiva.” E Calle olha, outra vez, para estas palavras pensando o que nelas existe de eminentemente teatral. “Com toda a dificuldade que tem um texto poético, este é de uma escrita complexa e rica tão contraditória e extremada. Mas não deixa de ser uma linguagem oral”. É isso que hoje compreende. “Sou muito mais livre do que era há 20 anos. Tenho menos medo de mim própria.”
Há 20 anos, “havia coisas de que não gostava”, diz Calle, ela que nas duas décadas seguintes pareceu sempre contrariar essa ideia: “Era muito tímida, não era extrovertida socialmente”. “Ir envelhecendo e crescendo depende das escolhas que se fazem. Rimbaud faz o contrário, parece ter vivido tudo na escrita e quando se pensa que ele escreveu toda a sua obra naquela idade e depois partiu, como se não tivesse mais nada para dizer, é muito intenso”.
Se há 20 anos havia o desejo de chegar aonde Rimbaud tinha estado ao escrever aquele poema, hoje, 20 anos depois, mais velha do que Rimbaud alguma vez foi, diz: “Naquele momento era urgente atirar-me para a vida.” Foi esse gesto que a levou àquele espectáculo. “Atirar-me, procurar-me, arriscar. Atirar-me para a minha própria vida”. E, com isso, perceber isto: “Eu permitir-me a mim própria.”
“É como se tivesses que fazer um percurso na vida para regressares ao que és na essência. E, se o conseguires fazer ao longo da vida, é aí que se vai chegar. Vais-te libertando de tudo.”
E 20 anos depois, A Virgem Doida de 2012 não é mais um espectáculo. É um regresso enformado por todos os autores que foram, depois, trabalhados por Calle: Becket, Bernhard, Pirandello, Müller, Tchékov, Fassbinder, Dagerman. Todos eles consequência do que está inscrito naquela peça inaugural. No fundo, este regresso, depois de todos os outros autores com quem foi conversando, muitos deles de forma repetida, levaram-na ao ponto de partida. E, com isso, percebendo melhor a necessidade de dizer as palavras que havia dito, agora reconhecendo nelas muitos autores que depois trabalhou e que “foram inspirar-se, basear-se e formar-se por Rimbaud”. Heiner Müller à cabeça, autor com quem viveu no último ano e meio, e onde identificou o que antes não sabia lá estar.
“Tantos textos inscritos em mim e voltar a Rimbaud é ver amplificado o que há 20 anos não sabia.”
Por isso, o modo como foi trabalhando ao longos dos anos levou a que, agora, considerasse que o único modo possível para evitar que esta remontagem fosse “uma peça de museu” e, assim, driblar “a pressão, a expectativa, até de quem não viu”, era alargar o que antes cabia num poema só, a todos os poemas de Uma Cerveja no Inferno, onde se inclui A Virgem Doida. Descobriu-o anteontem. E mudou o espectáculo todo. Há 20 anos, não lhe seria possível admitir mudar nada a três dias da estreia. “Não faria isso, nunca, por mais vontade, nunca teria essa coragem.”
Há 20 anos, a coragem não o permitiria. Hoje quer “mergulhar nas palavras”, quer deixar-se ir. Quer “ser conduzida por elas”. Hoje, como há 20 anos, Mónica Calle volta a despir-se. E começa de novo.