Três dedos abaixo do joelho
de Tiago Rodrigues. Com Isabel Abreu e Gonçalo Waddington. Sala-estúdio do Teatro Nacional D. Maria II. 29 Maio, 19h, lotação esgotada. Até 3 de Junho (Alkantara Festival)
**** (4 estrelas)
Há um momento, logo ao início de Três Dedos abaixo do Joelho, em que acreditamos que os dois actores, Isabel Abreu e Gonçalo Waddington, se preparam para representar As Cadeiras, de Ionesco. Ao espalharem o cenário por toda a sala, o que eles preparam, tal como os velhos dessa peça, é um festim para amigos imaginários que irão, depois, em picardias permanentes, fazer desfilar à nossa frente. Depressa percebemos que esta peça guarda do absurdo não apenas a ideia de denúncia através do simbolismo e da metáfora, mas também um jogo com a memória em todos os aspectos relevante.
O texto constrói-se cruzando as opiniões de diversos censores da comissão que durante o Estado Novo ditou as regras pelas quais o teatro português se deveria reger. E dá a Isabel Abreu e Gonçalo Waddington a oportunidade de brincarem com essas palavras, através de uma encenação falsamente expositiva. Este truque, que os leva a piscar o olho à plateia, a vestir e despir figurinos inspirados em peças que foram censuradas, a dialogar com o próprio texto, projectado na parede coberta das folhas das peças em causa, é a grande mais-valia deste espectáculo.
A encenação gere com surpreendente humildade uma recusa de cedência à armadilha retórica do espelho com os dias de hoje. É preciso regressar a Duas Metades (2007, com Patrícia Portela) para encontrar no percurso de Tiago Rodrigues um trabalho tão bem estruturado sobre as interferências num quotidiano programado. O cruzar as frases dos censores com frases das peças censuradas inventa um diálogo fársico, deixando que o absurdo da situação torne viva uma memória que não é apenas teatral. Nesse exercício de distância relativamente ao seu próprio trabalho – e que se tinha tornado num problema em peças como Se Uma Janela Se Abrisse (2010) e Alegria e Tristeza na Vida das Girafas (2011) – o que Tiago Rodrigues consegue é que seja a memória do espectador a fazer o exercício de comparação e projecção.
O que antes era motivado por uma cegueira ideológica é agora matéria fascinante, do ponto de vista da inventividade dramatúrgica. E o exercício proposto não é apenas uma homenagem a um trabalho de resiliência a quem insistiu na defesa do teatro enquanto agente de intervenção na sociedade. É um extraordinário momento de reflexão sobre o perigo da liberdade de pensamento.