Há um novo eixo sul-norte em construção
3 estrelas
por Luísa Roubaud
Uma sucessão de personagens desfila em cena: de uniforme militar, no típico calção claro e chapéu coloniais, ou de capacete operário; o vulto de um líder carismático; uma mulher de pernas amputadas, e uma dragqueen negra de cabeleira loira, qual extravagante e ambíguo ente das urbes actuais. Quatro intérpretes negros, primeiro de face oculta sob papel branco (a sugerir equipamentos antiminas, máscaras étnicas, o apartheid – ou apenas privados da visão?) irão transfigurar-se num palco quase despido.
Bancos corridos, uma mesa de som, cordas pendentes e tábuas sobre o chão, mais tarde suspensas, configurarão uma moldura. Atrás dela, como no interior de um quadro, as personagens lembram ícones vivos do realismo socialista a mesclar-se à era dos ecrãs digitais. Disputam o acesso a um microfone ou esboçam comunicar com o exterior. Cogitamos, então, sobre a vacuidade fragmentária dos media, o divórcio entre poder e cidadãos ou o desejo de visibilidade social. Por relances, entrevemos a condição africana de hoje, ainda assolada pelo fantasma dos conflitos armados e a memória colonial.
Ouviremos a voz de Samora Machel (durante o malogrado acordo de paz de Inkomati, com a Africa do Sul, 1984) a acompanhar os intérpretes-cidadãos (apesar deles, contra eles, à margem deles) num dos momentos mais intensos da peça: Panaibra Canda e Maria Tembe, num dueto de corpos-países emaranhados, em luta, interdependentes, condenados pela geografia e pela História à coabitação – assombrosamente plástica e atraente, a verdade a emanar do corpo decepado de Tembe. Ou Canda a reinterpretar o semblante histriónico e a oratória sedutora de Machel, tragicamente deslocada no tempo, a pairar, ainda, como evanescente hipótese de futuro e de utopia.
A duração de certas sequências traz, contudo, algum desgaste aos respectivos nexos: o longo silêncio inicial; o depoimento em dialecto da mulher enfaixada em ligaduras, distorcido nos equívocos da tradução. A marca forte da (única) presença musical (Piazzolla) cria certa dissonância neste contexto.
Canda (Maputo) e Boyze (Durban) conheceram-se em Portugal há dez anos. Hoje são propulsores da nova movida artística da África austral. A abrir o festival Alkantara, a peça (co-produzida pelo Panorama, Rio de Janeiro), assinala a triangulação África/Brasil/Portugal como opção política: trazer para plano dianteiro circuitos de criação a emergir a Sul. Para a dupla, o (des)acordo de Inkomati, foi mote para uma etnografia performativa sobre uma África contemporânea a desagrilhoar-se das armadilhas do folclorismo e a reflectir novas transversalidades culturais. Uma via tão vulnerável quanto a de uma África em busca de si mesma e de um lugar no mundo, personificada na mulher ferida e amputada a dizer-nos (supomos) no seu dialecto, no final da peça, continuar à procura do amante que nunca saberemos se existe.
Luísa Roubaud
O espectáculo de abertura do Alkantara Festival, The Inkomati (dis)cord, de Panaibra Canda e Boyzie Cekwana, apresentou-se no São Luiz, nos dias 23 e 24 de Maio. (fotografia Vitor Bello)