Philippe Quesne regressa a Lisboa no fim de semana de abertura do Alkantara Festival. Big Bang é um abecedário sobre o mundo e é, ao mesmo tempo, um extraordinário exercício de composição visual por um dos mais entusiasmantes encenadores contemporâneos. (texto publicado no Ípsilon de 25 de Maio)
Não é por acaso que a companhia do francês Phillipe Quesne se chama Vivarium, que naturalmente se pode traduzir por viveiro, e que o faz é definido como teatro de laboratório. As suas peças habitam um território de indefinição entre o teatro, enquanto estrutura formal, e as artes visuais, enquanto possibilidade de evasão. O que quer que aconteça do encontro entre dois tempos narrativos faz das peças de Quesne um dos mais entusiasmantes discursos da cena contemporânea. Pela velocidade a que se estendeu aos mais diversos festivais e teatros por todo o mundo, Quesne, aos 41 anos, deslocou-se da categoria de disruptor no quadro do teatro contemporâneo francês para cultor de uma imagem e de um discurso suficientemente apelativo a diferentes ambições. No que noutros seria oportunismo tácito, em Quesne é uma oportunidade para perguntar “como queremos, juntos, reinventar o que vemos”?
Big Bang, que se apresenta hoje e amanhã na Culturgest, em Lisboa, como parte do Alkantara Festival pode ser descrita como a terceira parte de uma trilogia cujos dois primeiros capítulos passaram, também pela Culturgest em 2009, L’Effect de Serge e La Meláncolie des Dragons, peças aparentemente sobre as capacidades do homem em se inventar. Porque feitas num quadro amplamente ficcionado, peças também sobre o desejo de reinvenção do próprio Homem, seja a uma escala mais reduzida, como em L’Effect de Serge ou, agora, como parte integrante da grande história da humanidade.
O encenador fala de “uma comédia sobre os primeiros homens e as primeiras mulheres”. E Big Bang é, a partir daí, um exercício de imaginação sobre o estado do mundo, “sem um fio condutor”, avançando e recuando conforme dita a imaginação e não a linearidade cénica. “ Os actores são compositores e artesãos do corpo, dos sons, dos objectos”, diz, para falar do que mais lhe agrada no teatro: “há uma dimensão artesanal que é preciso salvaguardar”. “Imagine-se um espaço onde são exibidas uma série de experimentações feitas ao longo de milhares de anos”, diz o encenador que, durante muito tempo, teve na mesa de trabalho o livro Royaume de l’artifice. L’émergence du kitsch au XIXe siècle, de Celeste Olalquiaga, e andou a ver documentários assinados pelo investigador Jean Painleve, que descreve como “comedias musicais sobre a vida do infinitamente pequeno plâncton submarino”. Big Bang é assim, como o é o ser humano: pequenino como o plâncton, ambicioso como a história do mundo.
Começou tudo com o título, “um pretexto para a experimentação que alimenta uma forma ambígua de existência entre a verdade e a mentira, entre o real e o artificial”, conta. O que se seguiu originou, aparentemente, um espectáculo sobre a teoria evolucionista, “registando rupturas, invenções, decomposições, desaparecimentos, tal como nas mais estranhas mutações”. Citamos do programa de estreia, no Festival de Avignon, no verão de 2010, quando a peça foi recebida com frieza e dividindo opiniões, como faria, menos de um ano depois, um outro objecto que, desde que estreou, permitiu a Big Bang ser melhor contextualizado. Falamos de A Árvore da Vida, o filme new age de Terrence Mallick sobre a invenção do mundo. Big Bang é, dizemos nós, melhor, mais divertido e leva-se muito menos a sério. Mas há muito de mallickiano em Big Bang, mesmo que em tons visionários. Novamente do programa: “Do plâncton ao pós-modernismo, indubitavelmente, homens e animais, silêncio e linguagens, nada e tudo co-existirão: a flutuação do vivente”.
Hoje, Quesne diz que “Big Bang abre múltiplas pistas que evocam, ao mesmo tempo, uma explosão gigantesca, uma teoria fundadora ou, tão simplesmente, uma simples onomatopeia da banda-desenhada. É também o nascimento do que é orgânico, do que prexistiu ao aparecimento da vida humana”. A peça vive, assim, de “atmosferas contrastantes, como se fossem pranchas de um livro em permanente evolução”. Quesne reconhece a influência da banda-desenhada neste espectáculo, e como o lado plástico permite trabalhar um universo imaterial. E fala, nomeadamente, em autores, como Chris Ware, Jens Harder, Ludovic Debeurme, Paul Hornschemeier ou Charles Burns, que trabalham entre o absurdo e o estudo social. “A cada sequência é dado um nome diferente”, diz, e essas peças curtas agirão sobre uma estrutura maior que “ambiciona questionar o próprio teatro”. O encenador dá o exemplo dos animais: “Devem ser representados por actores? E como? Com que aspecto? E o que é vegetal e o lugar de contemplação pura que isso pode ocupar no próprio espectáculo?”. Dúvidas que se traduzem em imagens, sons, palavras e objectos que vão co-existindo num jogo de experimentação permanente, explica.
“Durante o processo de criação de uma nova peça, acumulamos pequenas histórias, coleccionamos pequenas situações, e arquivamo-las para que, mais parte, possam ser usadas para uma partitura final”. O uso da expressão partitura, ao invés de guião, não será por acaso, porque tem tudo que ver com curiosidade despertada pelos sons. “A palavra, a música, a linguagem, tudo isso são descobertas que levaram a outras descobertas”, conta.
Desde que começou a produzir espectáculos, Philippe Quesne tem trabalhado não a partir de narrativas lineares, mas a partir de sujeitos mais amplos, muitas vezes especulativos, dando aos seus espectáculos não apenas essa dimensão exploratória dos laboratórios, mas também a possibilidade de contemplação de um outro paradigma teatral: um que, precisamente, não se encerre num formalismo premeditado e finito, mas antes se apresente como uma hipótese de estudo.
Em 2003, com La démangeaison des ailes a peça desenhava-se a partir de uma dramaturgia em queda livre, solta e imaginativa e suficiente para podermos projectar nas várias sequências um desejo de evasão que se revelaria trágico. A ressaca dessa experiência veio a série Des expériences (2005) ou aquilo que poderia ser designado como uma estupefacção perante o enfrentar das consequências produzidas no futuro pelas nossas acções. Um ano depois, em D’après nature, Quesne começava a deixar que preocupações à escala global, como o ambiente, se tornassem numa metáfora para as mais diversas problemáticas, e sobretudo para a nossa incapacidade, que ele via como imobilismo, para lidar com algumas dessas ameaças. O desejo de invenção, e de recriação, surgiria depois, com L’Effet de Serge (2007), La Mélancolie des dragons, (2008) e agora com Big Bang. Como se Quesne procurasse, através de uma inventariação de dados, relacionamentos e memórias, colectivas ou individuais, emocionais ou construídas, sugerir uma outra história para o mundo. É um projecto ambicioso, admite, mas o modo como o construiu permite a sua modelação permanente. “Eu vejo-a como algo melancólico, não necessariamente sobre a presença humana, mas sobre um mundo natural que se gere a si mesmo”.
Big Bang é um festim visual mas é-o, sobretudo, porque o reduzido uso do texto, e as muitas situações onde os actores-cientistas deslocam os objectos (desde canoas a mesas, de paus para uma fogueira a um carro), redesenham uma cenografia que produz belíssimas imagens, é certo mas, sobretudo, se comporta como uma paisagem não apenas visual mas também dramatúrgica.
Se nos recordarmos de L’Effect de Serge, já lá estavam as pequenas narrativas, contadas pelo solitário Serge em rotineiros domingos à tarde aos seus amigos. E a imagem final dessa peça víamos já os mesmos cientistas, de fato imaculadamente branco, a espreitar pela janela. Os mesmos que agora regressam, do mesmo modo que em La Melancolie des Dragons, as longas cabeleiras poderiam ser barbas de homens primitivos. Tudo isso se confunde agora em Big Bang, que em tudo se aproxima, pelo menos temporal e teoricamente, de espectáculos como The World in Pictures, dos Forced Entertainment e Discotheater, do Teatro Praga (apresentados no Alkantara 2008).
Quesne não recusa uma ideia de evolução. Não apenas de escala, no estrito sentido cénico, – do pequeno estúdio de Serge para o atelier dos cientistas em Big Bang – mas também de interrogação, como se, nessa pesquisa, procurasse ir mais longe no que ao tempo e a história diz respeito, confundindo planos ficcionais com planos reais. Ou seja, que narrativa comanda: a do tempo criado em palco, ou a que é criada pela distância histórica? “Para mim é muito importante mostrar como se pode estar, e por isso habitar, um palco”, começa por dizer. Por “habitar” Quesne fala de uma não separação entre palco e plateia, ou seja, entre o tempo da acção e o tempo da narrativa. O seu teatro joga-se entre o formalismo, e um ideia de completude do teatro – “uma ideia moralista, diria” – e a possibilidade de evasão promovida pelas artes visuais. “Gosto de pensar nas pequenas tentativas que se passam em cena como se fossem imagens de teatro pintadas como naturezas vivas”. “Como se o teatro pudesse viver sem os constrangimentos que habitam os esquemas do drama teatral, como os conflitos, a morte ou a traição, e apenas com mundos utópicos, proporcionados, pela fixação sugerida pelas artes visuais, paradoxalmente porque mais fixas do que as palavras”. A pequena comunidade de La Melancolie des Dragons ou de Big Bang, “não pretende nem procura mudar o mundo, mas antes reconfigurá-lo a partir de pequenos objectos, de materiais simples, como se cada um desses objectos e sequências, fossem micro-mundos colocados à disponibilidade do olhar do espectador”.
Em Big Bang, diz, e ao contrário de L’Effect de Serge, “já não há lugar para a fábula. Ou pelo menos, para a fábula da evolução”. O que significa que “o espectador é ainda mais livre de fazer o seu caminho”. Quesne não acredita que seja possível “esperar” alguma coisa do que se mostra. “Ou, pelo menos, do que eu mostro”. Esta ideia é já antiga e está na base do seu teatro. Numa das primeiras performances que criou quando ainda era estudante, recorda, era já disso que falava. “Chamava-se Expectative fallacieuse [Expectativa falaciosa] porque essa expectativa é entusiasmante. É uma falsa expectative porque aquilo que esperamos que aconteça, nunca acontece realmente e, por isso mesmo, os sentimentos de frustração e surpresa misturam-se”.
Dessa primeira experiência para Big Bang podem não ter passado muitos anos, mas passou tempo suficiente para que Quesne tenha querido ler nisso o nosso próprio modo de relacionamento com a história do mundo: “esperamos qualquer coisa e, zut!, a história muda de direcção. É preciso estarmos disponíveis para aceitar o que se passa, e servirmo-nos disso, reajustando permanentemente a nossa relação com o mundo”. No fundo, exactamente os passos que um cientista dá num laboratório: tese, hipótese e antítese.