As Edições Colibri editaram este mês a segunda edição, revista e actualizada, do livro “Dança Teatral – Ideias, Experiências, Ações”, resultado da tese de doutoramento em antropologia de Maria José Fazenda, antropóloga,, professora na Escola Superior de Dança e ex-crítica de dança do jornal PÚBLICO. O livro parte do trabalho dos coreógrafos Bill T. Jones, Merce Cunningham e Francisco Camacho e analisa o modo como os seus trabalhos reflectem “as visões dos criadores sobre a sua própria prática e as especificidades contextuais que informa o seu trabalho e as suas experiências”. O texto abaixo é a crítica publicada em 2007 no Ípsilon aquando da saída da primeira edição. Esta segunda edição respeita o acordo ortográfico
Não será por acaso que Maria José Fazenda,antropóloga e ex-crítica de dança do PÚBLICO , abre “Dança Teatral Ideias, Experiências, Acções”, o seu mais recente ensaio saído da sua tese de doutoramento, com uma definição tão clara: “A dança teatral é um género de performance que estabelece uma separação entre intérpretes e espectadores”. Ao longo do seu estudo, confrontar-nosá com exemplos de criadores e espectáculos que, partindo deste princípio, “exprimem ideias sobre a cultura e a sociedade em que vivem perante um grupo que assiste e reconhece essas convenções [próprias] e ideias” .
Seremos levados a questionar a separação, sobretudo se considerarmos que muita da dança contemporânea se bate pela anulação dessa separação, mesmo correndo o risco de a acentuar. Mas a separação de que Maria José Fazenda fala é de outra ordem, relacionando-se menos com um discurso apenas criativo, e mais com um “meta-comentário que os seus praticantes fazem sobre si e sobre as suas experiências sociais e culturais” . Ou seja, por oposição a outras nomeadamente a dança social e a ritual, “a dança refere-se ao mundo e ‘transporta’ o mundo para dentro da moldura teatral através de um trabalho complexo em torno da materialidade do movimento”.
Esse processo de respigação, que mais tarde será exemplificado demoradamente com os casos de Merce Cunningham, Bill T. Jones e Francisco Camacho (escolhas sintomáticas de um contexto euroamericano onde prevalece uma forma de pensar a dança enquanto organismo vivo e mutável através do processo de assimilação de variadas referências), tem como principal característica ser, ao mesmo tempo, “uma forma de representação do mundo da não dança e, logo, uma chave de acesso à sua complexidade” e propor “uma diferenciação dos seus praticantes definida pelo profissionalismo ou por uma especialização, e por outro lado, a definição prévia, no que diz respeito ao espectáculo em si, de um desenvolvimento ou de uma estrutura que deve ter lugar num espaço e tempo definidos”.
O que a autora reforça é que não há “uma dança contemporânea” e, por isso, estamos impossibilitados de classificar genericamente aquilo que vemos. Correndo-se o risco de nova classificação sumária, seria mais adequado referir “dança actual”, sugerindo “a existência de convenções flexíveis e diversificadas. Ou seja, num mesmo momento e contexto podem coexistir várias convenções” .
Os casos escolhidos são disso prova: para além de apelarem à necessidade de pensar em que termos se entende a transversalidade das obras, revelam ainda a existência de linhas que correm paralelas num mesmo contexto. Em Cunningham, procede-se a “uma organização espacial não hierarquizada [que] valoriza a liberdade individual e reconhece os indivíduos como sendo iguais entre si”, levando essa liberdade ao próprio espectador. Em Jones, há “uma intensificação coreográfica, ao nível do movimento e da comunicação, de uma relação solidária entre as pessoas”. Para Camacho, o movimento surge na “sobreposição de signos masculinos e femininos”.
Na sujeição da dança a um “possibilidade de provocar o desequilíbrio”, recupera-se o papel que o corpo poderá ter quando deseja intervir no mundo. A dança não será, então, apenas o movimento que parte de um corpo num espaço, mas o que com tudo isso se produz nesse mesmo espaço. A tomada de consciência (por parte do espectador) de que não é uma entidade neutra, mesmo que possa ser uma representação, será o que nos leva à separação indicada inicialmente. “A criação é uma prática reflexiva sobre a realidade em que o próprio sujeito se move”, e a dança só é contemporânea porque produz uma relação com o mundo que a rodeia e onde se insere.
Partindo da antropologia e dos estudos culturais para chegar à recepção crítica, permitindo assim introduzir referentes sociais e políticos na compreensão de uma matéria eminentemente intuitiva, “Dança Teatral Ideias, Experiências, Acções” revela-se uma obra fundamental na abordagem ao papel da dança e dos seus agentes num quadro mais alargado como o da sociedade contemporânea. Não é só porque nesta cuidada dissecação a autora não toma por adquiridos valores, expressões, métodos e ideias que abundam na gíria profissional, mas porque, procurando tornar acessível um discurso, fá-lo a partir de um princípio claro: “A dança é uma forma de acção e significado”.
Caberá, assim, ao espectador, a exploração do reconhecível naquilo que nos é estranho, concebendo a dança não apenas como actividade mas como acção produtora de significados que se regeneram (ou devem regenerar) em cada apresentação e no confronto com outras obras e espectadores.
Resgatando-se assim da efemeridade que lhes é inerente, os espectáculos ganham uma identidade própria sem nunca procurarem substituir-se ao que deve ser o programa de intervenção de cada um. Maria José Fazenda reforça: “A posição dos espectadores é, independentemente do lugar físico que ocupam na moldura teatral, pouco variável no que diz respeito ao seu papel no desenvolvimento da performance”. Ora, é na explicitação clara da ideia de que os espectáculos e os criadores se representam a si mesmos que, precisamente, se reconhece a sua importância na definição do mundo onde se inserem, e onde os espectadores vivem. É esta ideia de arte democrática e global, que sustenta uma disciplina na qual aquilo que “o corpo pode fazer para sobreviver é mais rápido que o pensamento”, como refere o coreógrafo Steve Paxton .
Atenta às implicações da produção de significados, cuidada na abordagem das consequências dos discursos artísticos, e dialogando com as obras, ou produzindo diálogos entre elas, Maria José Fazenda dá-nos um retrato esclarecedor da importância de reinterpretação do mundo “pela intervenção pessoal e criativa dos agentes” que, dessa forma, e conscientemente, aceitarão a separação e poderão “entender e organizar melhor as suas experiências”.