Quem tiver visto a “Ode Marítima”, de Fernando Pessoa, que o Festival de Almada trouxe a Portugal em 2010, lembrar-se-á do modo como o encenador Claude Régy, 90 anos, se dedica a deixar que o espaço e o tempo de uma peça sejam invadidos pelo modo de dizer um texto e pela exigente presença do actor. Sem efeitos nem metáfora visuais, apenas e só o confronto de um corpo com a palavra. A deixar que um texto se ouça, sabendo “que o essencial da escrita é o que não foi escrito”.
“Brume de Dieu” (que estreou na edição de 2010 do Festival d’Automne à Paris e teve depois longa digressão) foi a peça que se seguiu, e que agora regressa às apresentações, de hoje e até 16 de Maio no Kunsten Festival des Artes, em Bruxelas.
Também aqui, e usando o mesmo dispositivo visual e o mesmo jogo exploratório das luzes LED, se cria a ilusão de ser do corpo do actor que a luz emana. Aqui, porque o texto (criado a partir do romance “Os Pássaros”, do norueguês Tarjei Vesaas) fala de luz e sombras, damo-nos conta, como diz o encenador, “de que fomos durante muito tempo cegos”.
No centro de tudo isto está Laurent Cazanave, 24 anos, intérprete magistral, mas de experiência reduzida, que Régy conheceu num exercício de escola. Ele aproxima-nos, numa interpretação vertiginosa e sedutora, do paraíso perdido onde vive o protagonista Mattis: a sua cabeça. E é a carne consumida pelo pecado da curiosidade, num corpo que se deixa invadir por uma espécie de transe, em tudo semelhante à leitura que Régy fez de “4.48 Psicose”, de Sarah Kane, com Isabelle Huppert (que a Culturgest apresentou em 2004).
A voz, vinda das profundezas, eco dos medos e dos fantasmas dos outros, o corpo, matéria que Cazanave usa como se não lhe pertencesse, o espaço, território de luzes e de encobrimentos que Régy se diverte a percorrer, são elementos de uma peça construída como se fosse uma ilusão de óptica.