Depois de L’Effect de Serge e La Melancolie des Dragons, Phillipe Quesne regressará a Lisboa para apresentar BIG BANG, criação de 2010, que será apresentada dias 25 e 26 de Maio na Cultugest, no âmbito do Alkantara Festival.
Se há algo que distingue o discurso visual de Phillipe Quesne – acreditando que é possível falar hoje de singularidade – é a sua permanente pesquisa sobre uma imagem não-definitiva. As imagens que propõe não procuram um sentido imediato nem se sujeitam a ser um resumo da acção mas, pelo contrario, especulam sobre o que têm de real.
Ao sustentar o seu teatro na imagem, Quesne permanece, contudo, à margem de uma discussão sobre a substituição do texto pelo visual. Pelo contrario, ao se posicionar em sentido inverso à maioria da criação contemporânea, as paisagens cénicas propostas por este encenador constroem-se não a partir de um cadro preciso mas, em oposição, em busca de um ponto de fuga que se define a partir da estreita colaboração com o espectador e não a partir da projecção criada pela expectstiva deste. Dramaturgicamente isso resulta num olhar derrisório sobre o simbolismo retórico da imagem, onde a sobre-exposição dos elementos resulta não numa figuração, ou numa acumulação de sentidos, mais, pelo contrario, possibilidade a liberdade de escolha.
É possível encontrarem-se semelhanças com o suiço Christophe Marthaler ou com o japonês Toshiki Okada, nomes que se propõem a uma dissecação da realidade a partir do que nela subsiste de ficcional. São, os três, herdeiros – e produtores – de uma sociedade que regurgita as imagens e os seus significados. Tinhamos dado conta, em particular com “Actions au milieu naturel” (2005), “D’aprés nature” (2006) e “La Melancolie des Dragons” (2008), de um desejo de hibridização desenvolvido a partir da convenção do discurso teatral europeu (ou europeizado).
A princípio a imagem parece existir a partir de um acaso, ou de uma construção que insiste em se mostrar artificial, como se o que vemos não fosse senão um cenário ou então, uma tentativa de reprodução de uma paisagem real mas recriada como se fosse uma realidade paralela, onde tudo se assemelha, mas não exactamente. Mesmo os actores, ao jogarem com esta deslocação do real, existem não como personagens lineares, ou narrativas, mas, pelo contrario, como agentes activadores de um sentido que se sustenta pela sua simples presença em cena. O que de mais atractivo existe nas paisagens dramatúrgicas de Phillipe Quesne é, precisamente, a impossibilidade de uma existência cénica simplesmente ficcional. E isso, pelo modo como o fundamenta, distingue-o da generalidade da cena contemporânea europeia que tende a apontar o dedo à falibilidade da ficção dramática.
Em “Big Bang” voltamos a encontrar os elementos que temos como referência do seu trabalho, nomeadamente os carros, os efeitos de fumo, as perucas, a ideia do mundo como um parque de diversões ou uma abstracção sonora que se materializa e que existe como comentário discreto ao que se passa em cena. E, ao estabelecer uma relação directa com “La Melancolie des Dragons”, “Big Bang” retoma alguns elementos visuais e dramatúrgicos, nomeadamente uma certa ideia de comunidade que nunca sabemos se se constituiu circunstancialmente (ou sequer se se constrói realmente) através de quadros que não constituem, necessariamente, uma ordem.
Os diferentes quadros, permanentemente em construção, encadeiam-se sem que se distingam inícios e fins, a partir da mistura de cores – o branco representando a possibilidade de projecção mas também a cegueira, o verde, vindo do constante chroma-key (que permite a projecção de imagens), como intensa experiência cinética – dos objectos (árvores, cobertores, livros, canoas insufláveis) e dos espaços dentro do espaço (um carro invertido, um lago, uma fábrica, o fora-de-campo).
É, portanto, solicitado que o espectador responda não como simples interlocutor mas como instigador de sentidos. A estranheza do universo de Phillipe Quesne reside no reconhecimento de um teatro que usa uma imagem saturada e, a partir dela, inventaria um caminho de precisão rigoroso, no sentido de pertença como o defende a escritora norte-americana Toni Morrison: permanecer “estrangeiro em si mesmo”. Quer isto dizer que sugere que habitemos um “lugar” que se reconhece como “partilhável” mas onde permanecem as dúvidas sobre as fronteiras: como as fazer relacionar com os diferentes corpos que as habitam e omo prever uma existência no exterior dessa realidade. Quesne propõe-nos, afinal, uma reflexão-limite a partir da contemplação da possibilidade de escolha.
(texto escrito em 2010 durante o atelier Écrire la parole, conduzido no festival FAR, em Nyon, na Suiça, onde BIG BANG se apresentou)