A legitimação dos comentaristas
O processo que se desenvolveu na Assembleia da República até à formação do Governo que, na quinta-feira passada, tomou posse fez colocar da parte dos partidos vários conceitos de legitimidade. Legitimidade política, legitimidade constitucional, legitimidade parlamentar foram invocadas conforme mais lhes convinha. Mas a discussão destes conceitos ainda é a componente mais cavalheiresca de uma “guerrilha” discursiva partidária e parlamentar que vai ser uma continuada ordem do dia, sejam quais sejam, os pontos em agenda. E prevendo este conturbado contexto, talvez seja oportuno falar da legitimidade comunicacional. Mais concretamente da legitimação dos narradores das situações, das palavras e das coisas.
Não nos esqueçamos de que assim como há deputados com assento permanente na Assembleia da República, também há narradores profissionais com assento permanente na AR. A actividade política e parlamentar sem o prolongamento que lhes dão os media não existe.
Inspira-me nesta reflexão que, hoje, trago a esta página, um artigo de António Guerreiro escrito na sua Estação Meteorológica, inserta semanalmente no Ípsilon suplemento do PÚBLICO. Sob o título Comentaristas e politólogos (22.10.2015) diz António Guerreiro: «O chamado “comentário político” – na televisão, na rádio, nos jornais – tornou-se um lugar de convívio e de tertúlia, onde se encenam consensos e polémicas, acordos e beligerâncias. Um exército armado de painelistas e comentadores capturou a esfera pública e assegura a prossecução desta festa diária que em momentos críticos e de irrupção de algo novo, como este que estamos a viver, se torna uma torrente de discursos que nos sufocam e sufocam tudo. Trata-se de um exército de elite que tem a seu cargo a acção de modificar aquilo em que toca.»
De facto, parece-me que, com esta evolução do paradigma do sistema jornalístico, hoje em dia, predominantemente dominado pelo comentário (políticos transvertidos em jornalistas, jornalistas na pele de políticos), ou se quiserem, sobretudo focado no contar de estórias, no discorrer das narrativas construídas para contrariar o imediatismo da notícia que, neste turbilhão vertiginoso dos acontecimentos localizados num espaço global, nasce e morre repentinamente. E esta nova caracterização do sistema mediático não é só verificável na informação digital, mas também nos media audiovisuais e até na imprensa ainda mesmo a mais circunspecta. Daí, para o entendimento da ética jornalística em novos parâmetros, parece-me fundamental enunciar, perceber e justificar o papel do comentador. As televisões e as rádios multiplicaram esta comunidade imensa de comentadores. Há painéis a todas as horas e simultaneamente em quase todos os canais de informação. Não há um noticiário que não tenha um “frente a frente”, um debate, um confronto das “palavras e os actos”, constituídos aliás para dar ao grande público (e daí a sua responsabilidade) o próprio entendimento a tirar das notícias, dos acontecimentos. Este prolongamento do actual ecossistema mediático é replicado nos jornais com as suas longas páginas de comentários, como acontece no PÚBLICO, com o seu habitual Espaço Público. Aliás, registe-se que, hoje, há jornais digitais que são fundamentalmente comentário(s).
Não deixa, portanto, de ser oportuno considerar a legitimação comunicacional que os comentadores constroem sobre os factos, os eventos, as situações. E não ter em conta este seu papel e determinante importância no sistema comunicacional é destituir o funcionamento e a eficácia da ordem informativa. Os comentadores são directos legitimadores da nova ordem mediática. Não admira, por isso, quando confrontados, por exemplo, com a nova ordem decisória do Parlamento português, estejam ainda a rebuscar novas fórmulas para os seus comentários. Os narradores da actual vida política têm dificuldade em compreender como funciona um Parlamento com maiorias de coligação e com maiorias de votação somadas por quatro partidos que não se fundiram uns nos outros, mas mantêm a sua identidade, as suas linhas de força de identificação, obviamente, muito diversas. Não deixa, por isso, de ser interessante, e significativo, o tempo que gastam a “pitonisar” o tempo de durabilidade desta “nova ordem” de votação. Quando um governo tem maioria coligada é sempre imediato o resultado de qualquer votação.
E não se pense que, com esta generalização de tema, estou a escamotear o que, porventura, se passa cá por casa, no PÚBLICO, onde sou provedor do leitor. Esta teorização generalizada sobre a função legitimadora do discurso dos comentadores inclui, obviamente, as responsabilidades dos nossos e até pode ser entendida como uma recomendação à reflexão da direcção, das editorias e dos jornalistas comentaristas.