OS TRIBUNAIS E A LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
1.Como se escrevia no Editorial do Le Monde, do passado dia 3, “direito à Informação e o respeito pela vida privada sustentam um subtil equilíbrio”. Este editorial vinha a propósito do “affaire M.me Bettencourt”. Um caso sobre esta temática em grande debate na imprensa francesa. Exactamente pela divulgação dos registos de gravação clandestinos feitos pelo mordomo da velha e rica senhora, envolvida em escândalos com políticos, financiamento a partidos políticos, evasão fiscal, etc. Obviamente, é um caso de contornos diferentes até porque as gravações não são do processo de investigação em tribunal, mas da venda directa aos jornais. Mas a questão de fundo é aquela que põe em confronto a liberdade de informação e os direitos de privacidade da dita senhora. A imprensa advoga que tais factos dizem respeito ao reconhecimento de como vai o estado da República francesa. E daí a justificação da sua publicação. E é com esta justificação – o interesse público – que os media portugueses, com diferenciação de matizes, consoante o seu estatuto editorial, vêm seguindo o «caso Sócrates». A recente interposição dos advogados de José Sócrates no tribunal de uma providência cautelar que obstasse aos media detidos pelo grupo COFINA, muito especialmente o Correio da Manhã, a revista Sábado e o canal televisivo CMTV, de publicar notícias com dados sobre o processo que está em segredo de justiça externo, veio recolocar a discussão sobre este tema. A dita providência teve por decisão por parte do tribunal ficarem esses meios de comunicação social proibidos de “editarem, publicarem, ou divulgarem” peças ou parte das mesmas que estejam no dito processo em que José Sócrates é arguido. O CM reagiu considerando esta proibição prefigurar uma situação “perigosamente da ideia de censura prévia”. E valendo-se da situação desencadeou uma operação publicitária, fazendo publicar noutros jornais, entre os quais o PÚBLICO, anúncios sobre a ocorrência.
- O leitor A. Betâmio de Almeida vem confrontar o provedor a propósito da divulgação do dito anúncio. E, duramente, escreve: «Sinto-me obrigado a escrever-lhe de novo ao ver a edição de hoje do Público e o anúncio do CM que publica. A primeira sensação que tive foi esta: vergonha. A seguir dominei-me e passou a ser indignação ou protesto intelectual, frio.
1- A direcção do Público tem todo o direito de manifestar uma opinião própria e a solidariedade para com um outro órgão de comunicação social. Pode publicar editoriais, notas, proporcionar um debate com os leitores e tudo o mais. Trata-se de um caso judicial, controverso, em que o CM está envolvido. Trata-se de algo que envolve o segredo de justiça (externo) e a defesa e os direitos dos cidadãos sujeitos a investigação. Trata-se de liberdades e de direitos. Nem falo de presunção de inocência pois esse conceito é desconhecido do CM.
2- A publicação de um anúncio a pedido do CM é, no meu entender, lamentável. Ao conteúdo provocatório acresce a forma estética: a meu ver uma desgraça, mas evidenciando o nível intelectual dos autores. Não sei o que comentar: o que está tapado a azul ou o que não está. Evito cuidadosamente tal perda de tempo.
3- Acrescento dois aspectos muito desagradáveis: a ausência de um esclarecimento e justificação da Direcção do Público a acompanhar este anúncio insólito ou o texto de Ana Henriques e Pedro Dias (p. 5) que refere o anúncio e o comportamento de outros jornais (JN, DN) sem nunca se referir ao comportamento do Público e à publicação, nesse mesmo dia, do anúncio no Público. (…)
- A publicitação do anúncio reveste duplicidade. Faz público apelo à opinião publica da situação que o CM considera lesiva para com os direitos de informação e serve, de facto, a uma campanha publicitária do jornal. Deveria o PÚBLICO não alinhar com um seu concorrente esta operação de publicidade? Mas pode ou deve um outro qualquer meio de comunicação “vetar” ou rejeitar nas suas colunas de publicidade anúncios de outros “produtos” seus concorrentes? Parece-me que não. A questão recoloca-se, portanto, pelo conteúdo do anúncio. E nesse caso deveria a Direcção do PÚBLICO esclarecer o que a determinou a aceitar o dito anúncio? Antes, deveria o PÚBLICO manifestar solidariedade com o colega por senti-lo objecto de discriminação no exercício da liberdade de informação ou ficar-se pela simples aceitação comercial de um anúncio?
De facto, o PÚBLICO nesta querela não tomou qualquer posição editorial. Limitou-se a editar por duas vezes textos de notícia sobre o assunto. E talvez por esta questão – enquanto confronto liberdade de informação condicionamento desta por parte de um tribunal – estar ainda pouco explícita. Como escrevia o jurista Francisco Teixeira da Mota, aqui no PÚBLICO, no passado dia «30 de Outubro, não obstante com alguns envolvimentos ainda por esclarecer, «o que o tribunal determinou foi que não possa ser divulgado o teor de quaisquer elementos de prova constantes do processo de inquérito e que com essa proibição mais não está do que a reafirmar o segredo de justiça que ainda vigora para o exterior no processo da Operação Marquês». E se esta determinação do tribunal visa proteger o “segredo de justiça”, o que nem por isso deixa de ser uma decisão pouco comum, quando tantas vezes vemos desrespeitado esse sigilo, levantam-se aqui, porventura, outras questões para aclarar a dimensão jurídica e a dimensão jornalística do problema.
Confesso que, reconhecendo ser legal, não vejo com simpatia, e até direi como rigorosa medida facilitadora do cumprimento dos princípios deontológicos para os jornalistas, estes poderem inscrever-se como assistentes ao processo. Preferiria sempre a investigação jornalística separada da investigação policial ou processual. E no caso presente as distorções parecem evidentes.
Tudo o que se passado em redor da investigação da Operação Marquês tem contribuído para enevoar de modo muito duvidoso comportamentos de investigadores policiais e judiciais e investigadores jornalistas. Ter-se constituído o caso Sócrates em novela diária, principalmente na CMTV, é procedimento para conquistar audiências. Não nego as razões que possam subsistir quanto ao esclarecimento da opinião pública. Mas, tenho dúvidas que constitua um documental acervo para avaliar e estudar um dos casos mais implicativos no recente panorama politico, de como Justiça e Comunicação Social têm de fazer prevalecer os direitos da liberdade de informação e os direitos privados e deveres públicos de um cidadão, mesmo sem esquecer a sua condição de ex-primeiro ministro. Para um pleno esclarecimento de um caso que, quer do lado da Comunicação Social, quer do lado da Justiça e dos Tribunais, tem de reverter para ajuizar do estado da nossa República e das suas instituições.