Afinal, há Esquerda e há Direita
Estava o clima emocional e político de Portugal tão calmo e eis que, de repente, rebenta uma tensão como há muito não se via. A ebulição é tão grande que regressa uma linguagem de extremos. Alguns, desassossegados no seu conforto já cristalizado, até retomam sentimentos e palavras, – imagine-se – dos tempos do PREC. Anteontem, depois do discurso do presidente, que ainda o é, Cavaco Silva, faziam-se conjecturas sobre quem, afinal, estava na tentativa de perpetrar um “ golpe de Estado”: O presidente ou o António Costa.
Não admira. O alarme é grande. Efectivamente, depois do 25 de Novembro, em que militares sob o comando de Ramalho Eanes, acabaram com os intentos da Esquerda radical, o país político remetera a Esquerda, no Parlamento para uma ala de representação simbólica como ficava bem a uma democracia dita pluralista. Mas, verdade seja, essa Esquerda nunca mais incomodou a constituição das forças do poder executivo. E não obstante, todo o seu coerente trajecto de contestação, de protesto, a nível discursivo e de acções de rua e influência de movimentos sindicatos, com um PS, dito de Esquerda, mas sempre a oscilar mais para a Direita ou Centro-Direita, consolidou-se de tal modo a consignada expressão com valor real para os que estabelecem regras pela eficácia da tradição: há os partidos do “arco do poder ou da governação” e há os que estão ali, por acaso na disposição geográfica do hemiciclo à direita, para servirem de adorno, no fingimento do pluralismo da democracia. Mas eis que, quarenta anos passados, aproveitando a circunstância de uma janela aberta pelos resultados da última votação eleitoral, e também a guinada de PS de Costa, a perceber que pode ser de Esquerda, aqueles dois partidos que, com piores ou melhores resultados eleitorais, nunca negaram ser de Esquerda, querem escrever de modo diverso o curso da história. E vai daí forçam a hipótese. Congeminam na discussão de um acordo essa possibilidade.
Tanto bastou para baralhar o jogo jogado que há quarenta anos os ditos partidos do “arco da governação” ficassem atordoados. Invocam as regras da tradição, não as escritas, mesmo aquelas plasmadas em letra de lei na Constituição. E assim até o árbitro do jogo incomoda-se, perturba-se, e é levado a duvidar como vai resolver o que, apesar de todo o estudo, não parecia estar no guião.
Mas este andamento das coisas políticas não me admira. A bem dizer há anos, talvez há séculos que andamos nisto. Na história deste país, mas, sobretudo, nestes últimos tempos sempre escassearam os homens de rasgo com olhos no futuro, com o dito estatuto de líderes de uma pátria. Aliás, isto no país e numa Europa a cujos tratados e convenções estamos “amarrados”.
Mas, sinceramente, o que mais me espanta é sentir aqueles que têm na mão e na cabeça o predestino da História pela narração que fazem dos factos e as previsões que preconizam nos seus comentários, estejam também tão baralhados. Na era mediática uma das funções que cabe aos jornalistas é ler a História. Perceber que ela não se repete, mas não é estática. É dinâmica. Ainda não aprendemos o que escrevemos todos os dias: o mundo roda, a vida é mudança. A História e o Mundo só andam para a frente com rupturas. Homens com medo, agarrados ao passado, nunca contribuíram para a mudança dos tempos. Nunca pensei que ainda houvesse tantos com horror a oscilações do estaticismo das coisas. Não se pode macaquear a História. A maior parte dos comentadores que oiço na rádio e na televisão e leio nos jornais não só pensam pelas suas cabeças, mas fazem-se adivinhadores e arrogam-se ao devaneio de dizerem o que pensaram os leitores quando votaram. Não deixa de ser curioso verificar que mesmo aqueles que se diziam isentos, independentes, são abalados neste frenesim de clímax político e deixam emergir nos seus raciocínios o pavor do desconhecido, do tsunami que as águas da Esquerda estão a remexer na Assembleia da República. É verdade que não se sabe o que vem aí. Nem da Direita, nem da Esquerda. Para o país. E para uma Europa aflita, com guerras nas fronteiras, sem saber como pode garantir a coesão dos seus povos, invadida por uma onda de milhares de migrantes desesperados a fugir das guerras que patrocinámos, de uma Europa envergonhada, mas a disfarçar, desse patranhoso crime contra o ambiente ecológico mundial praticado pela germânica Volkswagen. Crime, sim, é o que é, ou só os “mata-insectos” é que afectam o ar que respiramos.
Efectivamente, são tempos fracturantes os que estamos a viver. Vivemos uma sociedade sem máscaras, como diz o antropólogo Mark Augé, no seu livro, Les Temps en ruine, (Paris, Galilée, 2003), mas é agora que temos de ter a consciência da História, que nos mostra a franqueza cínica da história humana. E a consciência da História exige aos cidadãos e especialmente aos jornalistas obstrução ao medo, e mais do que nunca, isenção e discernimento para configurar um futuro que nunca será igual ao passado.