Um diferendo sobre a taxa aplicada aos processos de insolvência
Da parte do vogal da Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares de Justiça, Dr. Victor Calvete, recebi, no passado dia 28 de Maio, a reclamação que abaixo publico. Porque excede o espaço de que disponho, sem distorcer o essencial como julgo, terei de resumir o texto. Por outro lado, devo pedir desculpa do atraso desta publicação, mas não o quis fazer sem ouvir a jornalista visada e, por lapso, saltei o registo da minha agenda. Reconheço que o tempo decorrido entre o dia da edição do artigo e o texto da reclamação pode, efectivamente, ser penalizante para o devido esclarecimento do assunto. Creio, porém, que o texto da reclamação e o comentário da jornalista sobrelevarão esta falha. O fulcro da notícia que serve de pressuposto ao artigo é este: A Associação Portuguesa doa Administradores Judiciais (APAJ) defende que a taxa de 100 euros sobre cada processo de insolvência, introduzida pelo Governo “é flagrantemente inconstitucional”. Esta medida, que também é aplicada retroactivamente às falências judiciais pendentes na Justiça, já motivou queixas ao provedor de Justiça, ao Presidente da República e aos partidos. A estas entidades e ainda ao primeiro-ministro, à presidente do Parlamento, à procuradora-geral da República e aos diferentes grupos parlamentares vão pedir que o assunto seja exposto ao Tribunal Constitucional.
Por sua vez diz o texto da reclamação:
«No passado dia 27 do corrente mês, o Público deu destaque (pp. 16-17) à cobrança de taxas aos administradores de insolvência, num artigo assinado por Raquel Almeida Correia “Gestores de insolvências querem TC a avaliar taxa de 100 euros por processo”.
No seu essencial, repete, com as inevitáveis actualizações, o artigo da mesma jornalista publicado em 18 de Novembro de 2014 “Governo quer gestores de insolvência a pagar 100 euros por cada processo,” em que também se apresentaram, sem contraditório, as posições da Associação dos Administradores Judiciais(APAJ).
Tendo em conta que o universo dos sujeitos à taxa era, até à passada semana, de menos de três centenas (“perto de 280” dizia-se num dos artigos) é reconfortante saber quanto o Público se preocupa com minorias. Sobretudo com minorias que auferem uma remuneração fixa por processo de dois mil euros (artigo 1.º, n.º 1 da Portaria n.º 51/2005, de 20 de janeiro de 2005), têm quinhentos euros como provisão para despesas em cada processo (artigo 2.º, n.º 1, da dita portaria), e auferem ainda uma remuneração variável, calculada nos termos das tabelas anexas à mesma portaria, que, nos termos do artigo 23.º, n.º 6, da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro – tem como limite cinquenta mil euros em cada processo.
Se a Senhora jornalista tivesse ouvido a Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça (CAAJ) (…) teria evitado os seguintes erros ou imprecisões:
– o montante cobrado aos administradores judiciais, até ao dia de hoje, pela taxa de acompanhamento, fiscalização e disciplina prevista no artigo 12.º, n.º 9, da Lei n.º 22/2013, e no artigo 30.º da Lei n.º 77/2013, de 21 de Novembro, não chega a cento e trinta mil euros (menos de metade dos trezentos mil euros referidos no artigo);
– o acesso ao CITIUS está a ser ultimado (como o próprio Presidente da APAJ referiu na proposta enviada para a reunião do próximo órgão de gestão da CAAJ; (…)
– o programa de distribuição aleatória de processos foi apresentado pela CAAJ ao Conselho Superior da Magistratura em Novembro de 2014, como referido no Relatório de Actividades da CAAJ desse ano, numa altura em que não dispunha de receitas, nem de capacidade administrativa, para poder assegurar a sua aquisição. A disponibilização do sistema só espera autorização para o seu alojamento;
– O artigo 5.º , n.º1 da Portaria n.º 90/2015, de 25 de Março, dispõe que o pagamento da taxa é feita “através de referência de multibanco própria, disponibilizada pela CAAJ”. Ainda que a indicação de um NIB permita o pagamento multibanco, tem sido fornecida uma referência multibanco própria a todos os administradores que o solicitaram;
– sem prejuízo de a decisão sobre esse ponto de Direito não caber à CAAJ, a repercussão da taxa sobre os devedores é uma interpretação que o Senhor Presidente da APAJ não logrou incluir na lei, nem na portaria, e que, na verdade, deixaria os administradores judiciais isentos do pagamento da taxa que – em contrapartida – é suportada (sem repercussão) pelos agentes de execução (os outros auxiliares da Justiça sujeitos à jurisdição da CAAJ); de resto, essa interpretação é contraditória com o que se escreve no mesmo parágrafo da “notícia”: que um administrador judicial teve de deixar a profissão por causa do custo suportado com a taxa;
– a incidência da taxa sobre processos que não tenham sido ainda objecto de apresentação de contas teve como efeito a apresentação destas num grande número de casos e, onde tal apresentação de contas não tenha ocorrido, recai sobre processos em curso, nada havendo de retroactivo na sua sujeição apagamento;
Nada há, pois, de inconstitucional na taxa colectiva sobre uma actividade exercida em regime de profissão liberal (…) cujos custos, ao contrário do que diz o Senhor Presidente da APAJ, não devem ser (só) suportados pelo Estado: a actividade é reservada aos profissionais credenciados pela CAAJ, e gera benefícios para os próprios. De resto, (…) desde a revisão constitucional de 1997 a existência de “contribuições financeiras a favor das entidades públicas”, como “tertium genus” entre impostos e taxas e visando contemplar as taxas de regulação, tem consagração constitucional expressa (artigo 165.º, i), daCRP).
Sendo, na minha opinião – admissivelmente parcial –, mais do que adequado que (finalmente!) os administradores judiciais sejam chamados a contribuir para o pagamento dos custos gerados pela sua monitorização contínua, estranho a insistência do Público naquilo que – pela unilateralidade da abordagem – parece, a mais de algo sensacionalista, pouco independente de poderes particulares».
Comentário da jornalista Raquel Almeida Correia:
«Concordo que a CAAJ poderia ter sido contactada, embora não estivesse em causa a necessidade de contraditório desta comissão, já que a taxa em causa foi criada pelo Governo.
Sobre as imprecisões elencadas, o montante referido no artigo foi cedido, como se explica, pela própria APAJ com base nas notas de pagamento dos administradores judiciais; a questão do acesso ao CITIUS e do programa de distribuição aleatória está, como o artigo indica e leitor confirma, pendente; a portaria que institui a taxa obrigava a que o pagamento fosse feito por referência multibanco própria e o leitor confirma que tal só está a acontecer “a todos os administradores que o solicitaram”; as referências às repercussões da taxa nos devedores e às consequências que a sua aplicação já teve são da autoria do presidente da APAJ e não da jornalista; o tema da retroactividade é um dos pontos contestados pela APAJ, assim com a sua eventual inconstitucionalidade, não cabendo à jornalista pronunciar-se sobre questões que só poderão ser esclarecidas em tribunal.
Por último, sobre o argumento do leitor de que o universo sujeito a esta taxa é uma “minoria”, considerou-se o tema relevante também pelo facto de a APAJ alertar que a taxa poderá ser repercutida nos devedores, o que naturalmente aumenta em muitos milhares esse universo».