O «FENÓMENO RONALDO»
A queixa a seguir transcrita vai dar-me mote para a crónica de hoje. Escreve o leitor: «O Público é o meu jornal porque julgo ser o diário mais isento e equilibrado, mas, sinceramente, publicar 8 páginas na edição de 13/1/2015 sobre Cristiano Ronaldo, por ter sido considerado o melhor futebolista do ano, quando até já tinha publicado 6 páginas no Caderno 2, dois dias antes, convenhamos que é demais. Sobretudo num país em que se lê pouco, mas que tem três diários desportivos que quase só escrevem sobre futebol e em que somos bombardeados com inúmeros programas televisivos de “análise”sobre se houve ou não penalti, ou se foi ou não fora de jogo. Um país com as carências conhecidas, mas com gente de muito valor em diversas áreas, e em que o jogo da bola ou qualquer coisa que se lhe relacione parecem ser as matérias mais relevantes. Ora, o Público, enquanto jornal de referência, tem responsabilidades e por isso não deveria contribuir para alienação colectiva em que há muito se transformou o nosso futebol.»
Cristiano Ronaldo é um fenómeno, um «fenómeno global». Sem dúvida, na contemporaneidade, o que mais «populariza» os media é o seu enlaçamento com os desportos de massas. Entre nós, portugueses, e entre todos os países da Europa, particularmente o futebol. Para não me alienar, de propósito, não quis dizer, é a «embalagem noticiosa» que mais vende. E, como tal, nesta lógica, não posso dizer que o PÚBLICO seja imune a tais consequências. Parece-me, contudo, que sem fugir ao panorama geral do «acontecimento global» desse dia, essas páginas, tentaram analisar «o fenómeno Ronaldo» sob outros pontos de vista. Ronaldo, um caso de estudo da sua capacidade física, da excelência dos resultados da sua metodologia de treino, da sua disciplina de trabalho, da sua extensão desportiva à dimensão de «produto» de marketing e de «força do mercado» (o que Ronaldo associado a marcas faz vender e o que leva a considerá-lo, hoje, a maior marca de Portugal), e ainda na sua faceta de um exemplo de ascensão social, ilusoriamente colocada como caminho possível a todos os indivíduos.
De facto, há múltiplas reflexões a extrair deste outro fenómeno a que o investigador da Faculdade de Comunicação da Universidade de Sevilha, Rojas Torrijos, denominou a «futebolização da informação». E, acima de tudo, importa aprofundar as condições de favorecimento de ordem social, política, económica, cultural que contribuem para esta hierarquização de «valores notícia». Sem sair de casa, isto é, da própria esfera mediática, é óbvio que a actual crise com que os media se defrontam concorre para a ocupação deste espaço. E não me parece que culpabilizar o futebol, ou os fenómenos associados a ele, como «o caso de estudo Ronaldo», seja a via melhor conseguida para situar a questão do transtorno da ordem social em que nos encontramos. Se é verdade que a «ordem circense» de uma «povão» facilmente entretido com as coisas da bola ludibria a razão dos tempos difíceis e de certa angústia e incerteza que vivemos, impõe-se, sobretudo, e com responsabilidade, ordenar os factos e as causas, anulando os soporíferos.