O motivo e a estratégia

O motivo e a estratégia
Um ataque terrorista no coração da Europa, na cidade de Paris, seria sempre um atentado de repercussão estrondosa. Esse acto perpetrado sobre um órgão de comunicação social de significado especial, feito em caricatura e humor, estava concebido para ter um eco com retornos de efeitos incomensuráveis. E se há um elemento sempre muito privilegiado nas acções de terror é a sua dimensão comunicacional.
O motivo deste atroz massacre praticado sobre os indefesos jornalistas do Charlie Hebdo, no momento, em reunião de redacção, ficou expresso no grito dos atacantes após a matança: “Vingámos o Profeta Maomé! Matámos o Charlie Hebdo!” O motivo é a razão arranjada para cometer o delito. O motivo era castigar, exterminar, o jornal e os jornalistas que, várias vezes, têm versado, na sua forma de dizer as coisas, com sátira, humor e caricaturas, temas islâmicos, e em particular com respeito aos movimentos jihadistas e da Al-Qaeda. Porventura, o ajuste de contas estava para fazer desde 2006, aquando da republicação dos polémicos cartoons de Maomé, dados à estampa, em primeira mão, na Dinamarca.
Como tal, a primeira reacção da França, dos franceses, da Europa e de quase de todo o Mundo, foi ler nesse acto de «matar o Charlie Hebdo», o ataque à liberdade de expressão, de opinião, um valor máximo em que está construída a cultura ocidental. Interpretado esse crime com esse sentido, a frase Je suis Charlie, proclamada pelos jornalistas e replicada pelos cidadãos em geral, tornou-se emblemática para a condenação e rejeição às intenções da matança dos irmãos Kouachi.
Mas para além de condenar esta monstruosa acção, de lamentar e chorar a morte dos jornalistas do Charlie Hebdo, julgo que se impõe avançar para leituras interpretativas mais profundas. E esta tarefa, investida em humanitária missão ética, caberá muito especialmente aos jornalistas e aos «fabricadores de opinião».
Este acto é o episódio de uma estratégia que preside à guerra jihadista: espalhar o terror, apavorar os cidadãos do mundo contra o qual esses movimentos radicais lutam. Quando da decapitação do jornalista James Foley pelo exército desse dito Estado Islâmico, o EI, onde dezenas e dezenas de assassinatos têm acontecido, escrevi que a imagem mostrada ao mundo não era escolhida aleatoriamente. O facto da imagem ser a de um jornalista multiplicava a mensagem que para o EI era importante disseminar: Garantir a notícia do terror é essencial para uma lógica de movimentos radicais. E, na verdade, os media reagem mais intensamente com o que lhes vai sucedendo ao pé de casa ou entre os seus. A imagem que, nestas últimas horas, os ecrãs televisivos do mundo inteiro transmitiam de Paris, cidade em autêntico cenário de guerra, com 88 mil agentes das forças policiais em plena acção para capturar os três suspeitos autores do morticínio realizado na sede do Charlie Hebdo e depois do outro atacante entrincheirado numa mercearia Kosher com 14 reféns, em Porta de Vincennes, era, por si só e ironicamente, uma elegia ao terror intencionalmente provocado. Os autores (que, cautelosamente, por segredo de investigação, as autoridades continuam a dizer os suspeitos autores do atentado ao jornal satírico), tinham realizado com terrível sucesso a missão de que estavam incumbidos Eles tinham como certa a morte que os esperava, aliás auto-consagrando-se como «mártires pela causa». «A França persegue os irmãos Kouachi e enfrenta a jihad nas suas ruas», titulava o texto de João Ruela Ribeiro, no PÚBLICO de 09.01.2015. Faz pensar. A guerra não está lá longe. Está nas ruas de Paris.
Aos jornalistas pede-se que não cessem de investigar, de destapar o que está escondido, nesta luta sem trégua que os exércitos do terror estão a provocar. Pede-se que não fiquem pela reportagem que perturba, excita, atemoriza, «vende». Aos «fazedores de opinião» pede-se que não esgotem a linearidade do seu discurso no «politicamente correcto», ou nas interpretações que só aumentam o medo, a xenofobia e a insegurança citadina. Estamos enredados em situações tremendamente complexas. É preciso desvendar as razões porque a Europa está a ser atacada. Dizia o Editorial do PÚBLICO do dia 8.01.2015: «É preciso mais do que palavras para que a intrusão dos inimigos da liberdade no quotidiano das sociedades actuais, seja em Paris, ou no Iémen, esteja definitivamente condenada ao fracasso». E para isso não basta proclamar Je suis Charlie, ou mesmo emocionalmente em conjunto dizermos: «Somos todos Charlie». Como escrevia, no Diário de Notícias (9.01.2015), a jornalista Fernanda Câncio: «Honrar os mártires do Charlie é descobrir como se sai desta armadilha». Desta armadilha, digo eu, que nos montaram, à qual vamos resistindo, atónitos, mas sem tomar verdadeira e real consciência de como a teremos de ultrapassar.

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