Conceitos jurídicos não equivalentes na comunicação social

Conceitos jurídicos
não equivalentes na comunicação social
1. As fissuras que cada vez mais profundamente se vão abrindo no terreno da actividade politico-partidária e, assim, na extensão de toda a arena da cidadania política, devem fazer a comunicação social reflectir e fazer um esforço para sair das «coisas de superfície», das «notícias do imediato», para analisar e nos interrogar a todos sobre «as questões de profundidade» no país e no mundo contemporâneos. Esta distinção entre as «notícias do imediato» e as «questões de profundidade» não é minha. É de Mauro Wolf ao analisar o escalonamento dos assuntos que dominam ou são dominantes na dita agenda dos media. Com efeito, o tema notícia que, desde há duas semanas, cilindra todas as agendas mediáticas é o da detenção e encarceramento de José Sócrates. Obviamente, a prisão preventiva de um ex-ministro não é uma «coisa de superfície», uma notícia da espuma das ondas. Mas será importante que tal notícia-bomba não faça apenas trazer à tona dos ecrãs das televisões ou dos jornais on-line ou de papel os dossiers da vida e actos de José Sócrates, ex-primeiro-ministro, há muito guardados. Já agora, pela sua importância e de carácter tão inusitado, era premente que, para além dos relatos pormenorizados das cenas do caso, matéria de fresca e atraente reportagem, tal nova, (no sentido etimológico da palavra notícia), trouxesse a debate na opinião pública e publicada «questões de profundidade» que afectam o sistema político em que vivemos e, como tal, a vida que levamos.
2. Estranhamente, ou não, as reclamações que, até agora, têm caído no meu correio sobre as notícias ou reportagens do PÚBLICO a propósito deste acontecimento, não incidem sobre a falta do cumprimento das regras de uma conduta ética e deontológica. Com excepção do lamento manifestado por alguns leitores pelo facto do PÚBLICO, na sua edição de papel, do dia 23.11.2014, ao contrário dos outros jornais, não noticiar a detenção do ex-primeiro ministro, as queixas que tenho recebido versam mais sobre aspectos de narrativas menos bem formuladas a propósito da cor ou etnia e do estatuto de profissional isolado do advogado João Araújo.
E para caminhar para algumas das «questões de fundo» que este fatídico acontecimento da prisão de um ex-primeiro-ministro não é preciso inventar muito. Basta pegar na discrepância entre alguns conceitos de significância jurídica ou da jurisprudência e citados correntemente na comunicação social. E tentar explicar por que razão esses conceitos não têm equivalente correspondente na vida real e nas práticas discursiva dos media. Sejam exemplos, aqueles, nestes últimos dias, citados vezes sem conta: «segredo de justiça», «presunção de inocência», «separação de poderes», a «justiça é cega», e tantos outros. Vejamos as descoincidências reais de alguns desses conceitos.
3. A ilusão da impossibilidade material de ser guardado o «segredo de justiça» perdi-a (imaginem!) aquando do «processo D. Branca», estive no TIC (Tribunal de Instrução Criminal), encarregado pela magistrada condutora do processo de construir um perfil sociológico dos «clientes» desse «falso banco». Não pela escrupulosa e exigente guarda de segredo da competente juíza. O problema não está em quem conduz o processo. Está nas necessárias tramitações da execução da investigação e seu enquadramento situacional. Aliás, escrevi, algures, um texto O segredo morreu (e, reparo, não deram notícia dessa morte). E como, na edição de 23.11.2014 do PÚBLICO, escrevia num texto – Investigação jornalística, investigação policial, numa correlação noticiosa dos factos, há a matéria informativa na posse dos jornalistas, obtida por fontes anónimas, (hui!) ou sugeridas, como até naquelas envolvidas na investigação policial. Estas, por estratégia para conseguir a descoberta acertada dos factos e suas circunstâncias, fazem funcionar no espaço público determinadas informações. Ora, em muitos casos, noticiosamente fortes, a mistura dos segredos da justiça e dos segredos da investigação jornalística torna-se explosiva. Isto, independentemente, de não ser de considerar o não cumprimento de regras deontológicas no rigor informativo, porventura, aqui e ali, tratados diferentemente na estratégia comunicacional de jornais ditos de referência e jornais populares ou sensacionalistas. Esta estratégia vem no seguimento inerente a cada projecto editorial.
Por outro lado, basta esta diferenciação entre o segredo de justiça e o segredo desvendado a funcionar no espaço comunicacional pelas informações ou interpretações divulgadas nos media, ou simplesmente pelos rumores ou versões públicas correntes, para desconjuntar a apregoada «presunção de inocência», conceito/valor, em rigor de justiça exigível à protecção dos direitos cívicos, mas realmente baralhado e destruído.
O uso diplomático do «politicamente correcto» está esburacado e não tem vigência na actual e real vivência dos cidadãos comuns. Em relação à fractura entre os actores políticos e os cidadãos, os primeiros, na sua grande maioria, ainda não perceberam (ou fazem-se desentendidos) que as pessoas mais do que dos partidos estão fartas dos seus figurantes. Quase, mais coisa ou menos coisa, são sempre os mesmos, cujas caras ou discursos de tanto mediaticamente repetidos provocam um cansaço dilacerador na convivência da vida pública. O cansaço destrói conceitos, destrói observância de valores tradicionaimente instituídos.
Para a justiça ser efectivamente cega e em evidenciação da força da efectiva separação de poderes é fundamental que ela funcione com iguais procedimentos e resultados quando está no poder um governo de cor x ou quando está um governo de cor y.
4. É estranho que a imprensa dê devida atenção, e ainda bem, a ditas causas fracturantes do dito statu quo ante como o «casamento» entre pessoas do mesmo sexo, ou a adopção de crianças por estes, etc. e não trate e tente explicar, em profundidade e linguagem entendível para o grande público, esta forte disrupção a acontecer nas fímbrias estruturais de uma sociedade que, por ser nova, ou pelos menos outra, ninguém a sabe governar. Os políticos do establishement, todos, desde Obama a Putin, tentam esconder os efeitos múltiplos sentidos no viver das pessoas no mundo actual, do após casos protagonizados por Julian Assange com o célebre relatório da Wikileaks ou das revelações do ex-funcionário da CIA ( Central Intelligence Agency) Edward Snowden, recentemente muito bem documentadas no CitizenFour, recentemente exibido no Festival Estoril/Lisboa 2014. Aí, não há segredo que escape. Do Estado, das instituições, dos pecados ocultos.
É por isso (estarei errado?) que eu penso que os conceitos jurídicos não são equivalentes no mundo de comunicação social em que, hoje, vivemos. Não é uma questão de linguagem, ou linguagens, ou até de decifração de conceitos. É toda uma outra questão da realidade da vida, sem vidros ofuscados, seja no automóvel de um cidadão aprisionado, seja de um tribunal no Campus da Justiça em Lisboa. Nada disto é o fim. Do sistema ou do mundo. Da política ou da vida. É o princípio de outra era.

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