Jornalismo e Ciência

Jornalismo e Ciência

Alguns leitores acusam – me de não dar resposta clara a questões que têm levantado a propósito de artigos ou até simples tratamento de notícias sobre assuntos do campo da ciência, pura ou aplicada, por parte do PÚBLICO ou dos seus jornalistas. No fundo, acusam-me de entre a posição, tese ou teoria que defendem em contraponto àquelas apresentadas pelos jornalistas, não ter uma última palavra a dirimir, afinal, de que lado está a razão. Aliás, tenho consciência de que esta acusação pode ser extensiva ao meu comportamento em relação a temas de outra natureza, deixando em aberto e não «fechado» o plano da opinião ou da interpretação noticiosa sobre determinados assuntos.

E se esta minha habitual conduta está muito interiorizada e constitui até padrão normativo da minha actuação, embora correndo os riscos de estar a bem com deus e com o diabo, no campo estrito da comunicação científica é uma opção de fundo.

Não sou minimamente defensor do enunciado por vezes presente nalgumas escolas de jornalismo: o jornalismo científico. O enunciado jornalismo científico encobre uma grande ambiguidade.O jornalismo científico não existe. Bem sei que essa denominação é invocada como se referem campos de especificidade do jornalismo, jornalismo económico, jornalismo desportivo, jornalismo político, jornalismo religioso e outros ramos. E daí a variada designação de jornalistas económicos, jornalistas desportivos, etc. Obviamente que o exercício do jornalismo sobre as práticas desses campos comporta uma determinada especialização adquirida no aprofundamento dos saberes e fazeres dessas actividades. Mas é engraçado conferir que se aceita genericamente bem a designação de jornalista económico, jornalista desportivo, já não se aceita jornalista político, jornalista religioso, o que seria uma confusão entre o objecto noticioso ou da informação jornalística e os profissionais de outro ofício. Assim, posso entender a denominação de jornalistas científicos aqueles que trabalham, sobretudo, na área da ciência com uma preparação cuidada e específica na transmissão do saber, de um saber competente e mais compreensível ao público em geral. E, aqui, abre-se um campo quase de fronteiras ilimitadas, dado o ritmo alucinante que, hoje, felizmente para a sociedade, marca o desenvolvimento científico e tecnológico. É por isso uma especialização bem difícil a daqueles jornalistas que trabalham na mediação da ciência ou da comunicação científica, quer pela especificidade das várias ciências, dos seus diferentes objectos, conceitos, teorias, reportórios experimentais e investigados, quer pelo target ou grau cultural das audiências. E ainda bem que, hoje, ao contrário de outros tempos, em que os cientistas se fechavam nos seus gabinetes ou laboratórios, julgando dispensável dar troco aos media generalistasde grande públicoé cada vez mais corrente e maior o número daqueles com estatuto de cientistas, (experts), que estão abertos à função de esclarecimento junto da informação jornalística sobre a complexidade de determinados fenómenos ou situações no campo da ciência.

Sem esquecer todos os requisitos de ética e correcção deontológica a que o jornalismo está sujeito, um acreditado especialista em estudos sobre jornalismo, Daniel Cornu, no seu livro Jornalismo e verdade – para uma ética da informação, (Lisboa, Instituto Piaget, 1999, 266) lembra que «o jornalista é em larga medida senhor da sua maneira de tratar um assunto». «O jornalista dispõe de um certo número de variáveis entre as quais tem a faculdade de escolher». Se esta orientação é abrangente a toda a actuação de um jornalista, muito mais vejo-a pertinente em relação a assuntos que no campo científico são objecto de grande polémica, de teses ou teorias contrapostas, e arrastam uma discussão em aberto. É o caso da questão dos alimentos transgénicos. Aliás no campo científico, como no campo político e no campo económico, e até ideológico, com directas implicações de vária ordem.

Ora a contestação que o leitor Diogo Vargas tem mantido com o PÚBLICO, mais directamente com a jornalista Ana Gerschenfeld da secção Ciência deste jornal, encaro-a na perspectiva que descrevo nesta minha crónica. Não me cabe dar publicação aos artigos que envia. Tenho servido de mediação entre a jornalista e as tomadas de posição de cada um. E julgo que, a favor da ciência e do bem público, a discussão sobre este polémico e controvertido tema é salutar. E deve continuar. No caso, trago-a a tema desta crónica por me parecer bem paradigmático ao entendimento da versatilidade do exercício do jornalismo.

 

 

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