A NAU DE CRISTÓVÃO COLOMBO
OU «OS NAUFRÁGIOS DO PÚBLICO»?
Até agora tenho mantido a orientação de tomar nesta crónica a discussão de temas/assuntos sugeridos ou a propósito de questões levantadas por leitores. Tenho evitado, por opção que entendi livremente seguir, a indicação dos nomes dos respectivos leitores. Porém, hoje, e em virtude da natureza do próprio tema que confronta posições no âmbito da discussão de jornalismo e investigação científica, julgo muito mais apropriado identificar os intervenientes.
A propósito do artigo de David Keys, sob o título «Foi descoberta a famosa nau de Cristóvão Colombo no Haiti?», publicado no PÚBLICO, em 14.05.2014, e de uma notícia replicada da agência Lusa sob o mesmo assunto, recebi do arqueólogo náutico e subaquático, Alexandre Monteiro, professor e investigador do Instituto de Arqueologia e Paleociências integrado no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa uma exposição em que o professor reage de forma contundente ao conteúdo desses artigos por não terem qualquer fundamentação científica. Em solidariedade com estes protestos, igualmente recebi do professor investigador, também especialista em arqueologia, Luís Filipe Monteiro Vieira de Castro, uma missiva electrónica, repudiando tal publicação e secundando com firme argumentação a posição do seu colega, Alexandre Monteiro. Ambos invocam o princípio de que, em jornalismo, «um jornal que se pretende de referência» não pode fazer publicar conteúdos destes, em «artigo puramente especulativo». Tal publicação sobre «achados não comprovados de navios afundados na Indonésia e no Haiti» e divulgados sem contraditório, constituem «um insulto permanente à inteligência, à ciência, à democracia». Tais artigos «alimentam e reforçam os lobbies da caça ao tesouro dos antiquários, das leiloeiras e dos coleccionadores».
Sobre este assunto solicitei à editora da secção de Cultura do PÚBLICO, a jornalista Isabel Salema que me informou David Keys, jornalista especialista em arqueologia, ser um colaborador de há muito tempo da secção de Cultura deste jornal.
Obviamente, como facilmente se reconhecerá, eu não tenho qualquer competência científica para dirimir as duas teses (uma de pesquisa jornalística, outra de investigação científica), nem tal, como provedor, me compete. Academicamente, tenho razões para aceitar a tese de contestação à veracidade desta propalada descoberta, por parte dos professores investigadores, não só pelos argumentos que invocam, como pela qualificação que possuem de acreditados investigadores numa categorizada instituição como é a Universidade Nova de Lisboa.
Por outro lado, reli a notícia e o texto de David Keys, que me pareceu fundamentalmente um artigo de «divulgação jornalística», sem reclamar a defesa de uma tese «cientificamente correcta». O próprio título do artigo é construído com um ponto de interrogação e as afirmações a que o autor alude revestem-se sempre de um carácter não peremptório. Tais como: «os arqueólogos pensam», as provas «sugerem fortemente que esta nau naufragada é a famosa nau de Colombo, a Santa Maria». E o próprio David Keys cita o arqueólogo Barry Clyfford, o qual diz que este achado «merece uma investigação científica detalhada para se obterem artefactos de diagnóstico».
Assim sendo, entendo que estamos perante uma questão que remete para a polémica articulação entre temas/assuntos de divulgação científica e teses propriamente de cuidadosa investigação científica. É evidente que esta minha posição comporta problemas atinentes á interpretação do papel do jornalismo e no caso concreto do PÚBLICO, até nos compromissos que proclama, quer no seu Estatuto Editorial, quer no Livro de Estilo, quando se colocam em confronto teses de investigação científica e de divulgação jornalística. Por isso, advogo que os professores escrevam um artigo sustentando a vossa tese científica e o enviem para a Direcção Editorial do Público a esclarecer a contestação da «versão jornalística». Exactamente para não desvirtuar essa iniciativa não aludi aos vossos argumentos. Restringi-me à questão editorial e à busca de razões justificativas da publicação do artigo. Jornalismo e ciência necessitam destes debates. Não têm finalidades diferentes em relação à veracidade dos factos, mas seguem caminhos diferenciados.
P.S.- Eu sei que enviaram uma carta à Directora, solicitando publicação. Mas também sei que, agora, reconhecem a utilização de uma linguagem carregada de um certo «histerismo inicial», compreensível pela forte reacção que tiveram a esta notícia, segundo o vosso entendimento, sem o fundamento indispensável ao serviço da ciência, e como defendem, e de um jornalismo «sério e responsável».
Nesta jornada de votação eleitoral, em que ainda não se sabe muito bem em nome de que comportamento responsável e democrático, vários temas versados podem ferir as determinações legalmente em vigor, este assunto até me serviu de refúgio, em maior segurança.