DOS RITUAIS DE INICIAÇÃO
AOS ATENTADOS À DIGNIDADE
Já há algum tempo, escrevia-me um Leitor a lamentar o «silêncio» – opinava ele – que o PÚBLICO estava a fazer sobre a questão das praxes académicas. E apelava para que «o seu jornal» tomasse sobre o assunto uma posição clara. E ainda outros leitores reclamavam do PÚBLICO uma posição absolutamente condenatória das praxes.
Na altura, não quis entrar no calor da discussão por entender que com base nos tristes e lamentáveis acontecimentos do Meco da morte de modo incrível daquele grupo de alunos da Universidade Lusófona estávamos no pico de um «vulcão» de enormes especulações. Situação que nem a memória das vítimas, nem a dor das suas famílias, mereciam. Agora, na sequência de um trabalho jornalístico de Andreia Sanches (texto) e de Joana Bourgard (fotografia) dado à estampa, no especial dossier inserido na edição do PÚBLICO de 4 de Maio de 2014, escreve-me um Leitor a comentar este artigo. Fundamentalmente elogia o trabalho jornalístico de Andreia Sanches e Joana Bourgard, mas também faz alguns reparos. Entende este Leitor que as autoras deveriam «procurar pedagogicamente partilhar boas práticas existentes (nas praxes académicas), pois elas existem». E o Leitor deixava o seu próprio testemunho. Hoje, com recordação da sua vida académica, não esquecia as boas práticas dessas praxes e, sobretudo, redimensionava dois princípios que seguiu para tirar positivo proveito das praxes: «Sempre que me senti ofendido fiz questão de o fazer notar», norteado por um segundo princípio «nunca faças aos outros aquilo que não gostas que te façam».
Procurei ouvir a opinião das jornalistas do artigo, sobretudo, para saber se efectivamente achavam o seu trabalho ter deixado mais realçado o lado negativo e reprovável das praxes académicas, esquecendo os méritos dos rituais de iniciação na vida académica, objectivo pretendido por essas práticas. Na sua resposta, enviada para mim e para o respectivo Leitor, Andreia Sanches e Joana Bourgard explicam calmamente os critérios adoptados. O seu trabalho partiu da análise elaborada sobre os 250 depoimentos que nas respostas ao inquérito aberto pelo PÚBLICO no seu site foram recebidos. O dito inquérito baseava-se quase numa única interrogativa: «Foi praxado?». Conte-nos a sua experiência.
As jornalistas descrevem depois a metodologia adoptada: primeiro, pediram a cada autor de depoimentos autorização expressa para a publicação; depois, seleccionaram e publicaram quarenta testemunhos, obviamente sem fugir a um critério detonador da lógica do seu trabalho. E declaram, uma orientação geral seguida, a qual eu atribuo excelente nota classificativa de actuação: «Fazer jornalismo, também é seleccionar informação, apresentá-la ao leitor de forma acessível, objectiva e apelativa». Não foi nossa preocupação «de que a praxe vale a pena».
Sobre esta questão das praxes estamos, de facto, na discussão polémica de um tema que se extrema entre estas duas coordenadas escolhidas para título desta crónica, aliás inspirado no texto de Andreia Sanches e Joana Bourgard: Dos rituais de iniciação aos atentados à dignidade.
As praxes académicas têm atrás de si uma história de séculos. Estudiosos da matéria, como Eduarda Cruzeiro, Eliseu Estanque, Miguel Cardina, Aníbal Frias, Alberto Sousa Lamy e outros têm dedicado ao assunto larga e histórica investigação. Lembro-me até da existência de dois filmes sobre este tema das praxes: Rasganço de Raquel Freire e Academia de submissos de Hugo Almeida.
Obviamente, não me cabe aqui dissertar sobre este tema que veio à discussão pela tragédia do Meco e que, como sempre acontece, nestas circunstâncias de tragédia, concita opiniões e posições extremadas sobretudo na condenação. Compete-me sim, e foi isso que procurei fazer, revendo o arquivo do PÚBLICO, se este jornal, – na opinião de alguns leitores – fizera relativo e complacente «silêncio» sobre a dramática tragédia do passado dia 15 de Dezembro passado no Meco e se desleixara a trazer à colação o debate sobre as praxes académicas.
Sinceramente, julgo que não. Obviamente, e bem, o PÚBLICO não especulou. As tragédias favorecem sempre estes comportamentos. O PÚBLICO escreveu editoriais, relatou os factos acontecidos no Meco, registou vários depoimentos, desde as reacções do Ministro da Educação e dos Reitores, a prometerem reflectir e determinar regras sobre as praxes. Aliás, a própria Andreia Sanches já a 26 de Janeiro deste ano, portanto muito próximo dos tristes acontecimentos, publicara no PÚBLICO um artigo excelentemente bem enquadrado por uma visão histórica e sociológica sobre esta temática, sob o título «Praxe, Polémica e Violência, uma história de séculos».
De qualquer modo, era importante o PÚBLICO não deixar cair a discussão sobre as praxes. O PÚBLICO não pode deixar que as ilações que nos trazem as notícias, morram tão depressa como as notícias. Não desdigo o valor das praxes como ritual de iniciação na vida académica. Os rituais de iniciação têm valores e fins muito positivos. Historicamente, religiões e muitas organizações sociais consagram grande importância a esta prática. Nalguns casos, estas também não escapam a exageros civilizacionais. No que diz respeito às praxes académicas pode ser indesmentível a função que estas têm na integração do mundo académico. Aliás, nos depoimentos recolhidos no site do PÚBLICO, o benefício da «integração» era aquele mais salientado, 200 vezes citado. Mas também são inegáveis as práticas absurdas de violência, degradação humana, desprezo de direitos próprios a qualquer pessoa, de episódios grotescos e até «deploráveis e assustadores». Por isso responsáveis nas academias, estudantes ou dirigentes, não podem esquecer a regulamentação das praxes. Confesso que lendo alguns depoimentos fico chocado. E fico chocado, sobretudo, por não perceber como sendo, hoje, uma das mais positivas reivindicações dos jovens a sua emancipação em personalidade e direitos, estes consentem passar por práticas atentatórias e vexatórias à sua dignidade.