O provedor e o 25 de Abril

O PROVEDOR E O 25 DE ABRIL

Estes dias de Abril levam-nos a todos e principalmente aos e nos media a falar de revolução, de revolução de cravos. E de utopias, claro. Cravos na ponta de espingardas. Nunca vi uma mais eloquente imagem representativa, uma melhor retratação das utopias!

Pode o provedor, por um dia, deixar os jornalistas sossegados e reflectir sobre a sua própria função? Tem um provedor ou não o dever de se interrogar sobre o seu grau de responsabilidade na «ordem estabelecida» do discurso mediado publicamente? Tem o provedor ou não a obrigação de inocular no jornalismo comummente praticado umas centelhas de surto revolucionário para implodir, em tempos difíceis e desencontrados, o statu quo da informação/comunicação mediáticas? Hoje em dia, são muitos os Estados que invocam o «estado de excepção» por causa do «estado de emergência» de certas situações nacionais em dívida soberana, o qual comprime determinadas situações individuais, com cortes de benefícios próprios, escamoteamentos de direitos, com efeitos desastrosos ainda que seja, por exemplo, a destruição da classe média. Nestas especiais circunstâncias, de balanço e contra-balanços de ideais não cumpridos, antes adulterados, pode o provedor dos leitores de um jornal, no caso, do PÚBLICO, apelar a um «estado de excepção» de um dia, de um momento, de uma crónica? E pensar nas suas co-responsabilidades?

Bom, para não ser acusado de estar a utilizar linguagens complicadas, fora da gíria compreensível a todos os leitores (regra linear do bom jornalismo), vou socorrer-me de um exemplo futebolístico. Há dias vi o Gareth Bale, jogador do Real Madrid, marcar um golo genial. O adversário que o marcava não conseguindo acompanhar a sua estonteante corrida parou e tentou barrá-lo, travá-lo, junto à linha lateral. Bale, saindo por fora do campo, torneou-o e foi como uma seta até à baliza contrária, marcando um delicioso golo. E então pensei: Pois é, fazer jogadas fora das quatro linhas as regras do jogo não permitem. Mas sair fora do traçado, do esquema, das quatro linhas do campo, correr e retomar a bola, não há nada que o proíba. Sabem, é que nestes anos que já levo de provedor, primeiros quatro na RTP, agora há quatro meses no PÚBLICO, nestas atmosferas de dias de revolução, interrogo-me se não tenho andado muito dentro das quatro linhas, do esquema, afinal, do sistema, sem ter, sem forçar, a eficácia que a função me exigia.

Uma vez que o jornal, a sua direcção, o estatuto de provedor me garantem a total independência e liberdade no desempenho do ofício, mas porque sinto não conseguir ou ajudar a transformar a lógica do quadro cultural da mediatização vigente, começo a sentir-me «castigado» pelo meu fraco contributo de sentido revolucionário. Ou seja, aqui, emprego revolução no sentido de que só se modifica o Presente que não nos satisfaz e nos satura num futuro bem diferente, se contribuirmos para mudá-lo. A instância de provedor encaixa na consciência cívica e profissional de um jornalismo que é presciente que tem algo mais a fazer, a dizer, para não ser co-responsável dos desencantos, das desventuras, que por aí andam. Porventura, todos os que funcionamos no «sistema dos media» acomodámo-nos ao modo rotineiro de funcionar do sistema. Somos por demais tautológicos. Estamos, de boa-fé, de irrelevante consciência crítica, auto-convencidos que estamos a ser bons «cães de guarda» do sistema, dos Estados, dos governos, (watchdogs), na expressão crítica de Serge Halami. (Os novos cães de guarda, Oeiras, Editora Celta, 1998). Mas talvez, com a degradação das democracias, no dizer do sociólogo brasileiro Marcondes Filho, sim somos «cães de guarda», mas «cães perdidos» por aí, como tantos outros. Repercute-me na consciência, o juízo desse outro investigador brasileiro, Wilson Gomes, de que «o modelo da imprensa empresarial já não pode ser só entendida como um conjunto de serviços sociais (…), mas como um sistema industrial de serviços para prover o mercado de informações segundo o interesse das audiências». Afinal, actuamos num sector, o campo dos media, armadilhado por mecanismos de mercados.

E assim, porque nos situamos numa estrutura do Estado de Direito repugna-nos discernir que, em tempos de profundas contradições e denegações, o conceito de legitimidade eleitoral não corresponde ao conceito de legitimidade social. Temos medo de ofender o poder. Andamos encantados com a liberdade de dizer tudo o que nos vem à cabeça, mas não usufruímos, por negligência, medo ou ignorância, a condição livre de procurarmos entender e explicar o que se está a passar, o que estamos a passar, e porquê. Alegramo-nos, e saudamos entusiasmados, com as praças cheias de gente na dita «primavera árabe», mas depois deixamos escapar como e porquê acontecem as tragédias de uma Síria, (vergonha de um mundo civilizado), o sufoco do povo de um Egipto, ou as ameaças de guerra numa Ucrânia. Batemos palmas à eleição ou à reeleição de um Barack Obama, mas sonegamos as explicações porque continua tudo como era. Correctamente perfilamos o princípio moralmente ético que as dívidas de um Estado têm de ser pagas, mas não somos tão decididos a questionar os princípios ético – morais das exigências de como temos de pagar ou de como os credores nos obrigam a pagar. Óbvio, somos facilmente complacentes, em duas morais: a do empréstimo e a do pagamento.

Enfim, permitam-me assim, hoje, esta forma de recordar Abril. Resolvi trazer a esta página, algumas questões de fundo que o exercício de um jornalismo que queira ser vivificante para a democracia, adentro de um sistema global de dispositivos mediáticos que inclui o provedor, tem de repensar a forma de narrar e explicar o Presente. Isto, se não quiser ficar para o acontecer dos tempos vindouros um arguido a ser julgado pela História por causa da inépcia que teve. Pelo serviço que não prestou.

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