Os provedores também se queixam

(Crónica da edição de 13 de Janeiro de 2013)

 

Não é preciso ser-se historiador ou investigador de uma qualquer matéria para se compreender a importância dos arquivos dos jornais e o interesse público da sua boa conservação e organização. O advento da Internet tornou mais fácil o acesso generalizado, gratuito ou pago, à consulta do que foi escrito num passado próximo, com muitos jornais a colocarem em linha as suas edições dos últimos anos.

As novas facilidades trouxeram consigo novos problemas, que já aqui abordei, como os que se relacionam com a correcção de erros detectados em notícias do passado, e novos desafios éticos, como o da importância de assinalar essas correcções no próprio material arquivado — um novo serviço prestado à busca da verdade, que não é viável efectuar no campo da memória jornalística preservada nas hemerotecas. Um serviço tanto mais importante quando a experiência nos ensina que notícias já antigas, retiradas do seu contexto histórico e eventualmente erradas, mas entretanto capturadas por motores de busca, podem ganhar vida nova e propagar-se de modo viral através das redes sociais.

As enormes vantagens dos arquivos virtuais de fácil acesso geral pressupõem, naturalmente, que o que neles se encontra é uma reprodução fiel e completa do que um dia foi publicado numa efémera edição em papel. Se isto não acontece — e, como se verá, por vezes não acontece —, o resultado pode ser desastroso e ofender o respeito à verdade histórica e às regras éticas do jornalismo.

Foi o que sucedeu com uma iniciativa recente, e à partida louvável, deste jornal. Uma das novidades associadas ao lançamento do novo site do PÚBLICO, em Novembro passado, foi a criação de “páginas de autor”, nas quais qualquer leitor poderia consultar, segundo foi anunciado, todos os textos publicados ao longo do tempo por um mesmo autor, fosse ele jornalista ou colunista. É uma funcionalidade útil, não apenas para a consulta de elementos informativos (devendo, na minha opinião, vir a ser enriquecida por um sistema de sinalização de tópicos que permita encontrar com rapidez o que se procura), mas também, por exemplo, para acompanhar a evolução do pensamento de comentadores com influência na opinião pública e conhecer o modo como interpretaram, em cada momento, os sinais da actualidade.

Apesar de todas essas vantagens, aconselho os leitores interessados a utilizarem com a maior cautela, pelo menos no imediato, essa funcionalidade de consulta às “páginas de autor”, a que se acede facilmente através da página de abertura do site do PÚBLICO. Para explicar porquê, conto com a compreensão dos leitores para recorrer à descrição de uma experiência que me envolveu pessoalmente, enquanto autor desta coluna semanal. Julgo que a melhor forma de o fazer será a de a narrar através da correspondência trocada nos últimos dias com a directora do PÚBLICO.

“Desta vez”, escrevi em carta dirigida a Bárbara Reis na última terça-feira, “não venho comunicar qualquer reclamação recebida de um leitor. Venho apresentar eu próprio uma queixa, para a qual peço a melhor atenção”. Após explicar que considerava positiva a inovação de agregar em páginas próprias os textos de cada autor, referia: “Só há dias tive a curiosidade de ir espreitar a ‘minha’ página. O que encontrei deixou-me alarmado, pois imagino que os erros e deficiências que encontrei poderão repetir-se nas páginas de outros autores, defraudando os leitores que as consultam”.

Comecei por relatar os problemas e incongruências que detectara. Largas dezenas de textos que aqui assinei como provedor do leitor tinham sido omitidos. A maioria dos que constavam da página apresentava erros de datação. O pior, porém, viria depois, quando verifiquei que, a partir de determinado ponto na ordem cronológica inversa em que estão arrumados, surgiam títulos de textos que, como jornalista e comentador, escrevera para o PÚBLICO em 2000 e 2001, quando pertencia aos quadros do jornal.

“A partir daqui”, expliquei à directora, “é que as coisas se tornam realmente graves: (…) na quase totalidade dos casos, os textos que lá se encontram, depois de clicar nos títulos, não são meus, nem sei o que são ou de quem são, nem têm nada a ver com os títulos, mas são-me atribuídos”, com assinatura e fotografia, indicando ao leitor que “as prosas que aparecem são da minha autoria”. Descrevi ainda outras “falsificações”, como a de me ser atribuída uma entrevista que não fiz.

A terminar, dei conta de um facto que verdadeiramente me indignou: “Na (…) ‘minha’ página de autor, aparece, com data de 1 de Fevereiro de 2001 (ou de 1 de Março, conforme se lê a chamada ou o texto) e assinatura minha, uma prosa intitulada  José António Cerejo: delírio, fantasia e falsidades. Trata-se de um texto de tom marcadamente agressivo, de ataque pessoal ao [jornalista] J. A. Cerejo, que visa pôr em causa a sua reputação profissional”. Após a surpresa inicial de ver ser-me falsamente atribuída essa prosa que nunca escrevi nem subscrevo, e como resultado de uma pesquisa que não foi fácil, percebi, conforme comuniquei a Bárbara Reis, que se tratava de “um texto da autoria do então ministro do Ambiente José Sócrates, que foi efectivamente publicado no jornal em 1 de Março desse ano”. Fiz notar que, “a agravar a situação, o texto escrito por Sócrates pretende apresentar-se como uma crítica a práticas jornalísticas, o que poderá reforçar junto de qualquer leitor mais incauto a ideia falsa de que se trata de uma intervenção …do provedor do leitor”.

Pedi, naturalmente, a “remoção do texto de Sócrates” dessa página — o que foi feito de imediato —, bem como “uma explicação a quem possa ter sido levado ao engano ou possa vir a sê-lo no futuro face a uma eventual replicação por terceiros do que está em linha” — o que, até ao momento, não foi feito. E concluí chamando a atenção para a probabilidade de não ter sido a única vítima de um processo de arquivamento incompetente, que poderia afectar outros jornalistas e colunistas.

A directora do PÚBLICO respondeu-me no dia seguinte, para assegurar que tinham sido “retirados todos os textos até 2003” e que a situação estava a ser investigada, “para perceber como e porquê isto aconteceu e se é ou não generalizado”. Uma rápida pesquisa aleatória tinha-me já levado a confirmar, entretanto, a suspeita de que erros semelhantes afectavam outras “páginas de autor”, nomeadamente as de alguns colunistas. Considerando necessário informar desse facto autores e leitores, pedi informações sobre a origem e extensão do problema detectado, e acerca das medidas a tomar para reparar os danos que poderiam ter ocorrido, já que “nada garante que os textos erradamente atribuídos não possam já ter sido consultados ou reproduzidos”.

Na resposta que recebi anteontem não é esclarecida a extensão dos erros de arquivamento, mas é dada uma explicação para a sua causa. “A origem do problema”, escreve Bárbara Reis, “está na importação de dados feita em 2005 a partir de um sistema obsoleto. Este processo continha erros que até agora não tinham sido detectados”, à excepção do caso de “uma única pessoa [que] identificara erros na sua página”. Como medida imediata, acrescenta, “as associações dos autores aos textos anteriores a 2005 foram removidas esta semana, assim como o nome do autor” (uma nova pesquisa aleatória mostrou-me, no entanto, que, na véspera da publicação deste texto, essa informação não se confirmava). A directora do PÚBLICO esclarece, por outro lado, que “está a ser estudada uma solução” para que os textos retirados sejam correctamente repostos, e que o objectivo final é o de que estas “páginas de autor” venham a conter, de facto, todos os textos assinados por cada um dos colunistas ou jornalistas.

Espero que a normalização completa desta área do site do PÚBLICO possa ser feita com a desejável rapidez e que os leitores sejam informados quando isso acontecer, para que possam beneficiar da consulta às “páginas de autor” sem correrem o risco de deparar com “falsificações” que, sendo involuntárias, indiciam no entanto uma grande falta de rigor nos processos de arquivamento online. Não é aceitável que um serviço deste tipo seja lançado sem que antes seja devidamente testada a sua qualidade, nem é compreensível que, a ter existido algum tipo de teste, não tenha sido detectado o erro cometido.

A concluir, julgo que a direcção do PÚBLICO deveria considerar como autores, para efeito desta consulta por páginas individuais, todos os que, não escrevendo actualmente no jornal, aqui assinaram peças jornalísticas e artigos de opinião a partir da data de publicação a que remonta esta modalidade de arquivamento. A memória de um jornal não se compadece com exclusões. 

José Queirós

 

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