Reflexões suscitadas por uma greve, seguidas de um desafio aos leitores

 (Crónica da edição de 21 de Outubro de 2010)

 

A edição de ontem ficará na história do PÚBLICO. Apesar da elevada adesão (mais de 80% do corpo redactorial) a uma greve levada a cabo em protesto contra a anunciada intenção da empresa de despedir 48 trabalhadores, os leitores puderam encontrar o jornal nas bancas, como resultado de um esforço certamente excepcional dos responsáveis editoriais e de alguns jornalistas que terão entendido — como se lia numa nota da Direcção — que a sua publicação constituía uma “obrigação para com os leitores”.

Como se reconhecia na mesma nota, não se tratou de “uma edição como as outras”. Mostrava-o a notória quantidade de textos de autoria não identificada — nunca uma edição deste jornal se terá afastado tanto do “princípio geral” enunciado no seu Livro de Estilo, de que “todos os textos do PÚBLICO são assinados, à excepção das breves” —, bem como a predominância de fotografias de arquivo e outros sinais que não terão escapado aos leitores mais atentos. O produto final revela o que já se sabia: que é sempre possível a um punhado de profissionais publicar, sem grandes prejuízos no plano informativo, um jornal afectado por uma paralisação de um dia, tal como é insustentável fazê-lo, sem perdas graves de qualidade e informação própria, por um período mais alargado, sem o contributo global de uma redacção dotada de todas as suas valências e especializações.

No rescaldo deste confronto laboral sem precedentes, será pouco útil discutir quem, entre aderentes ou não à greve, melhor entendeu o sentido do seu compromisso com os leitores. Os grevistas tornaram claro que, do seu ponto de vista, estava em causa não só a natural solidariedade com quem vê ameaçado o seu posto de trabalho, mas também a convicção de que a forte redução anunciada no quadro redactorial ameaçaria o futuro do jornal como diário de referência. É também a defesa dessa “posição de referência” que a administração do PÚBLICO invoca para, em nome da “sustentabilidade” do projecto editorial, justificar as “medidas difíceis” que, segundo afirmou em comunicado, lhe “são exigidas”.

Seja qual for a perspectiva com que para ele se olha, esse é o problema que mais interessará aos leitores, como se depreende das mensagens que chegam por estes dias, manifestando preocupação pela sobrevivência do jornal que escolheram e pela manutenção da identidade editorial que os levou a essa escolha. É ou não possível compatibilizar qualidade e sustentabilidade? Sendo esse o debate que importa, “é talvez chegada a hora”, como escrevi há uma semana, de os leitores “serem chamados a ter uma voz neste debate”. As notas que se seguem visam contribuir para essa desejável discussão.

Em primeiro lugar, o pano de fundo. Vive-se em muitos países uma crise do jornalismo, ou, mais precisamente, uma crise da indústria jornalística, e nomeadamente das empresas produtoras do jornalismo de qualidade, que se manifesta na crescente insustentabilidade financeira das edições em papel, que perdem a maioria dos novos leitores para as plataformas digitais e outros meios tendencialmente gratuitos de acesso à informação. À perda de audiências e consequente perda de receitas dos jornais impressos soma-se a dificuldade de construir modelos viáveis de negócio para as edições on line.

No horizonte visível, que não é o fim do mundo a descobrir, anuncia-se o desaparecimento de muitos títulos do jornalismo de qualidade (ou pelo menos das suas edições em papel), de produção bem mais dispendiosa do que o segmento da imprensa dita popular. Ou, em alternativa não menos penosa para os leitores exigentes, a crescente desistência da qualidade informativa em nome da sobrevivência empresarial — que é ao que conduzirão, na falta de uma visão estratégica consequente, muitas das medidas de contracção de despesa que têm vindo a multiplicar-se no sector.

Têm razão os que vêem nesta crise uma ameaça real à saúde das democracias modernas, em que o jornalismo livre e independente desempenha hoje um papel tão indispensável quanto o das instituições que garantem a representação e o equilíbrio de poderes. Vale a pena reflectir no que nos dizem dois trechos, que reproduzo nesta página, do recente manifesto intitulado “Pelo jornalismo, pela democracia”. São verdades a sublinhar nos tempos que correm, de desinvestimento na informação, despedimentos e precariedade profissional nas redacções e anúncio da venda de títulos históricos a figuras de que não se conhece rosto nem agenda. Não devem ser vistas como preocupações corporativas, mas como apelo à cidadania.

Quanto ao problema específico deste jornal, que o conflito interno tornou mais visível, julgo que importa ter em conta o seguinte:

— Qualidade, diversidade temática, identidade editorial e independência foram razões maiores que levaram à fidelização de leitores e são as que deverão atrair outros no futuro. Erros que possam ser percebidos como lesões a esses atributos (como já algumas vezes aconteceu) provocam sempre afastamentos.

— A redução excessiva de meios humanos e materiais ameaça a qualidade. A perda da abrangência própria de um jornal generalista (veja-se por exemplo o contínuo enfraquecimento da informação de proximidade, nomeadamente nas grandes cidades) põe em causa a diversidade e a fidelidade de segmentos específicos de leitores. Oscilações ou opções inadequadas quanto às prioridades editoriais afectam o sentimento de identificação dos leitores com o jornal. O desequilíbrio financeiro é uma ameaça à independência, tal como o é o crescimento da insegurança profissional nas redacções.

— Nas edições on line poderá vir a estar, mas não está ainda, uma parte substancial da solução dos problemas financeiros das empresas do sector. Importa é que não se esqueça que, se a qualidade editorial não depende do suporte em que se apresenta, o bom jornalismo tem sempre um preço, e não pode esperar-se que seja um serviço gratuito. Convirá ainda ter em conta que o leitor típico do PÚBLICO se reconhecerá ainda hoje principalmente na edição em papel.

— O mercado nacional para um jornal com as características deste tem revelado os seus limites. Apesar de recuos compreensíveis nas ambições iniciais do projecto, o PÚBLICO continua a acumular prejuízos. Ainda que a sua presença nas bancas tenha sido assegurada até hoje em regime que quase se poderá classificar de mecenato, o facto leva muitos leitores a temer pela sobrevivência de um bem que já consideram seu, inerente à sua qualidade de vida e à sua cidadania informada.

— À margem de tudo o que possa ser feito, em qualidade de gestão e de condução editorial, para atenuar a aparente incompatibilidade entre a oferta de um jornalismo de referência, rigoroso e completo, e a sustentabilidade financeira da empresa que o edita, é difícil fugir à conclusão de que um jornal como este, que tantos leitores dizem não querer “perder”, não poderá sustentar-se a prazo com resultados comerciais como os que hoje apresenta.

— Quem mais precisa do PÚBLICO é quem o lê todos os dias. Julgo por isso que, para além de outros estímulos que possam vir da sociedade e das suas instituições (em nome da importância do jornalismo para a saúde da democracia), é sobretudo na comunidade dos seus leitores que poderão ser encontradas — assim o queiram e possam — soluções duradouras para a sobrevivência do jornal sem perda de qualidade. Trata-se afinal de tentar preservar um bem cultural e cívico que, enquanto produto no mercado, pedirá meças a qualquer outro em termos de relação qualidade-preço.

 

 Jornalismo e cidadania

Dois excertos — que são um convite à reflexão de todos — do manifesto “Pelo jornalismo, pela democracia”, posto a circular na semana passada por um grupo de profissionais da comunicação social:

“A crise que abala a maioria dos órgãos de informação em Portugal pode parecer aos mais desprevenidos uma mera questão laboral ou mesmo empresarial. Trata-se, contudo, de um problema mais largo e mais profundo, e que, ao afectar um sector estratégico, se reflecte de forma negativa e preocupante na organização da sociedade democrática. O jornalismo não se resume à produção de notícias e muito menos à reprodução de informações que chegam à redacção. Assenta na verificação e na validação da informação, na atribuição de relevância às fontes e acontecimentos, na fiscalização dos diferentes poderes e na oferta de uma pluralidade de olhares e de pontos de vista que dêem aos cidadãos um conhecimento informado do que é do interesse público, estimulem o debate e o confronto de ideias e permitam a multiplicidade de escolhas que caracteriza as democracias. O exercício destas funções centrais exige competências, recursos, tempo e condições de independência e de autonomia dos jornalistas. E não se pode fazer sem jornalistas ou com redacções reduzidas à sua ínfima expressão”.

“Sendo global, a crise do sector exige um empenhamento de todos —empresários, profissionais, Estado, cidadãos — na descoberta de soluções.
A redução de efectivos, a precariedade profissional e o desinvestimento nas redacções podem parecer uma solução no curto prazo, mas não vão garantir a sobrevivência das empresas jornalísticas. Conduzem, pelo contrário, a uma perda de rigor, de qualidade e de fiabilidade, que terá como consequência, numa espiral recessiva de cidadania, a desinformação da sociedade, a falta de exigência cívica e um enfraquecimento da democracia”.

José Queirós

 

 

 

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