(Crónica da edição de 14 de Outubro de 2012)
Não é da análise de notícias publicadas no jornal que hoje me ocupo, mas de factos que importam à relação do jornal com os seus leitores. Para registar que os leitores fiéis do PÚBLICO tiveram esta semana duas boas razões para sentirem que é correspondida a confiança depositada no jornal, e um motivo para se inquietarem seriamente sobre o seu futuro.
1. A primeira boa notícia — e a mais recente, já que se revela na edição de ontem — é a de que começou a dar frutos a pressão que este jornal vem fazendo há anos junto do Ministério da Educação para obter os dados necessários ao aperfeiçoamento dos rankings escolares que publica anualmente. Tendo tido um papel pioneiro na difusão deste retrato do sistema educativo nacional, o PÚBLICO não podia ficar insensível ao que muitos reclamavam: que à lista das escolas ordenadas pelos valores médios dos resultados alcançados pelos seus alunos nos exames nacionais — uma informação objectiva que continuará a ser indispensável — fosse acrescentada a ponderação dos dados de contexto que condicionam o desempenho de cada escola, com vista a uma aferição mais consistente da sua qualidade.
Como se lia no editorial de ontem, o ministério “abriu enfim mão de novos dados”, o que tornou possível — com a colaboração especializada de uma equipa da Universidade Católica do Porto — apresentar os rankings “numa leitura cruzada com o contexto socioeconómico das escolas”. Num outro texto, publicado no suplemento dedicado ao tema, o director adjunto Nuno Pacheco referia que os novos indicadores permitem começar a cumprir uma promessa feita há dois anos (dar um “novo e indispensável salto no conhecimento das nossas escolas”), mas notava igualmente que os dados agora obtidos são ainda limitados, e fornecidos num prazo pouco compatível com o seu estudo aprofundado.
Deixando para mais tarde uma possível análise mais detalhada do que ontem foi publicado, e concordando com Nuno Pacheco que ainda “há muito mais dados a cruzar” e “análises a fazer” para obter um retrato mais nítido e mais útil do desempenho das escolas básicas e secundárias, julgo que deve ser saudado este passo no caminho certo. E que devem continuar a ser reclamados ao poder político, em nome do direito à informação, todos os elementos que permitam aperfeiçoar este serviço público.
A introdução agora consagrada e o eventual alargamento futuro de parâmetros que vão para além dos resultados dos exames poderá tornar mais complexa a leitura dos rankings. Julgo que o PÚBLICO não deverá dar por satisfeita a sua ambição neste domínio enquanto não estiverem reunidas as seguintes condições: que a administração educativa forneça todas as informações exigíveis e em tempo útil; que a direcção do jornal defina com independência os critérios editoriais para a sua divulgação; que uma equipa especializada, como a da Universidade Católica, garanta o tratamento e análise dos dados; e, finalmente, que os jornalistas façam o que é próprio do seu trabalho — transformar um estudo tecnicamente complexo em informação clara e acessível a todos.
2. A segunda boa notícia, sujeita a confirmação futura, é a de que o jornalismo de investigação regressou às páginas do PÚBLICO. Refiro-me à publicação — saudada por vários leitores — dos trabalhos assinados por José António Cerejo nas edições de 8 e 11 de Outubro.
O bom jornalismo de investigação, sério e independente, nada tem a ver com a profusão de notícias superficiais e incompletas, por vezes sensacionalistas, publicadas sem contraditório nem verificação dos factos, alimentadas por fontes inquinadas e fugas de informação não sindicáveis, sujeitas a todos os desmentidos, que se multiplicam na imprensa menos escrupulosa e contribuem para poluir o espaço público.
O jornalismo de investigação digno desse nome não dá recados; investiga. É rigoroso, procura ser exaustivo, guia-se pela busca esforçada da verdade e pela noção de interesse público. É um instrumento essencial para a saúde de uma sociedade democrática.
Tal como foi narrado nestas páginas, o caso Tecnoforma — que envolve factos relevantes, e até agora desconhecidos da opinião pública, dos currículos do actual primeiro-ministro e do seu ministro Relvas — apresenta todos os sinais de um caso exemplar de promiscuidade entre a política e os negócios, entre interesses privados e o exercício de cargos públicos. No seu centro está a utilização polémica, para dizer o mínimo, de dinheiros públicos. O interesse público dos textos de José António Cerejo é indiscutível.
Cada leitor fará agora o seu juízo informado sobre os factos revelados, de acordo com os seus próprios valores. O PÚBLICO cumpriu a sua missão de escrutinar os actos e o carácter de responsáveis de cargos públicos que tomam decisões que afectam todos os cidadãos. A aposta numa agenda própria de investigação jornalística independente tem de ser vista como uma obrigação de serviço público. Sacrificá-la em nome dos seus custos é inverter as prioridades editoriais de um jornal de referência.
3. Os custos do jornalismo de qualidade foram invocados na última quarta-feira pela administração e pela direcção editorial do PÚBLICO para darem aos leitores uma péssima notícia. Em nome da sustentabilidade financeira de um projecto ameaçado pela crise económica e pela crise específica da imprensa (perda de receitas de publicidade e circulação), foi anunciado um plano de reestruturação assente em dois vectores: maior aposta nas plataformas digitais e uma “redução da estrutura de custos”, que é em boa parte um eufemismo para o despedimento colectivo de 48 “colaboradores”, entre os quais cerca de três dezenas de jornalistas.
Diversos leitores reagiram com apreensão a esta notícia. Cito, por todos, José Oliveira, da Cruz Quebrada: “Resta-me (não) esperar o pior, ou seja, a total descaracterização do projecto inicial do PÚBLICO e do seu posicionamento como jornal de referência no panorama da imprensa escrita portuguesa”. A apreensão é legítima. Não há bom jornalismo sem bons jornalistas. No papel como na Internet.
Os nomes de diversos profissionais cuja “dispensa” foi anunciada foram dados a conhecer em outros meios de comunicação. Muitos leitores reconhecerão, em alguns desses nomes, profissionais que são, eles próprios, jornalistas de referência nas respectivas áreas. Quero acreditar que olharão com a compreensão possível o anunciado recurso a um dia de greve por parte de uma redacção que todos os dias lhes oferece o jornal em que se habituaram a confiar.
Dificilmente uma contracção como esta na dimensão da equipa redactorial deixará de afectar a qualidade do jornal. É como provedor do leitor, e não dos jornalistas (que não sou), que quero também acreditar que a decisão anunciada possa ainda ser reequacionada. Não sendo este o momento nem o lugar para discutir os méritos da “aposta estratégica no digital” anunciada pelos responsáveis do PÚBLICO, valerá a pena lembrar que os leitores que fizeram deste o seu jornal estão ainda longe de encontrar na edição on line , apesar de todos os seus méritos, o cumprimento cabal da promessa inaugural deste diário: notícias completas, originais, rigorosas, bem escritas e bem editadas por profissionais qualificados e experientes.
Nada do que fica dito permite ignorar que a saúde financeira de um jornal é uma condição necessária à sua independência. Ou que, no caso do PÚBLICO, a sua sobrevivência a anos sucessivos de desequilíbrio financeiro ficou a dever-se exclusivamente à determinação de um empresário que decidiu contribuir para a qualificação da imprensa diária no seu país. Como é geralmente reconhecido, e apesar de inevitáveis sobressaltos pelo caminho, o projecto editorial mostrou-se no essencial bem-sucedido, e o seu hipotético desaparecimento seria certamente sentido como um verdadeiro empobrecimento cultural por aqueles que afinal o justificam: os seus leitores.
A péssima notícia desta semana, somada a outras más notícias do passado e a possíveis más notícias futuras, deve de facto ser vista como uma ameaça à qualidade do jornal. Abaixo da fasquia de exigência a que se comprometeu — e sei, pelas mensagens que recebo, que alguns leitores vêem esse patamar a aproximar-se, e outros o deram já por ultrapassado —, o PÚBLICO deixaria de fazer sentido.
Por isso, a questão que vale a pena debater, em toda a sua crueza, é a de saber se é hoje possível fazer em Portugal, para o mercado português, sem prejuízo financeiro, um diário sintonizado com os padrões internacionais de qualidade. Ou se é possível encontrar formas de o tornar viável mesmo que as receitas de publicidade e circulação não cubram todas as despesas que são o preço dessa qualidade. É talvez chegada a hora de os leitores fiéis do PÚBLICO serem chamados a ter uma voz neste debate.
José Queirós
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