Quatro formas de usar um lenço

(Crónica da edição de 3 de Junho de 2012)

Atraído pela frase “Ana Brasil, a editora Life&Style, mostra-lhe quatro formas de usar um lenço que pode aplicar a diferentes ocasiões e estados de espírito” (numa chamada de última página da edição do passado dia 13 de Maio), o leitor Firmino Monteiro consultou pela primeira vez o espaço Life&Style, que o PÚBLICO define como um dos sites-satélite da sua edição on line.”

“A editora da referida secção”, descreve em mensagem que me enviou uns dias depois, “exibe, num vídeo de 3 minutos e 26 segundos de duração, os seus dotes de especialista em dar nós diferentes a um lenço na cabeça, assumindo, tal como prometia a nota, um visual diferente em cada uma das formas de colocar o lenço. Diferenças que são substancialmente acentuadas pelo uso de óculos de sol também diferentes em cada posição do lenço”.

O vídeo em questão encontra-se desde 8 de Maio na secção intitulada “Conselhos” do espaço Life&Style, e é acompanhado de uma “ficha de produção” que inclui a designação comercial, o preço e um dos locais de venda do lenço exibido, de quatro pares de óculos diferentes e ainda do “macacão” envergado pela protagonista.
 
Apesar de ter achado “interessante” o “resultado estético do exercício”, o leitor manifesta a sua “perplexidade” pelo facto de a personagem filmada “estar identificada como editora da secção”. Considerando que no vídeo em questão “se promovem produtos comerciais”, pergunta se “o termo editora está aqui usado como é comummente aceite” ou se a secção Life&Style “é feita por gente sensível às modas, mas insensível às normas éticas da profissão de jornalista”.

Antecipando a resposta — “Partamos do princípio que num jornal como o PÚBLICO, quando se identifica alguém como editora, é porque essa pessoa tem responsabilidades editoriais, logo é jornalista sénior, com poderes delegados para tomar decisões de publicar ou não matérias informativas” —, Firmino Monteiro lança em seguida um conjunto de questões: “Deve uma jornalista (ainda por cima editora) ser protagonista de uma exibição de produtos de moda? (…) Ser o sujeito de uma promoção de produtos comerciais, no caso um lenço e quatro pares de óculos? Pode (…) aconselhar o uso de produtos comerciais cuja marca e preço aparecem por baixo do vídeo, tal como as lojas onde podem ser adquiridos, (…) sem incorrer na violação das normas por que se rege o Estatuto do Jornalista? Pode (…) manter a carteira profissional — assumindo que possui tal título — depois de ter promovido desta forma descarada produtos comerciais?”. E interroga ainda: ” Ou acharão os responsáveis do PÚBLICO que um simples vídeo numa obscura (?) secção do on line se pode eximir ao cumprimento das regras deontológicas que regulam a profissão de jornalista?”.

Enderecei estas questões à directora do jornal. Bárbara Reis começa por notar que “o Life&Style é tudo menos uma secção obscura”: “Este mês, teve 300 mil visitas únicas e mais de três milhões de pageviews, um dos melhores números de sempre na sua curta vida (10 meses). Tem sete secções, uma delas, Moda. Ana Brasil é a editora do site, ou seja, é a responsável por todos os seus conteúdos. Como tantos editores de sites semelhantes em jornais de referência internacionais, Ana Brasil faz shoppings, ou seja, sugestões de compras”.

“Este vídeo específico”, acrescenta a directora, “era no entanto mais do que isso. Era sobre como se pode criar quatro looks diferentes com um único lenço. Um vídeo prático que tem como objectivo aconselhar os leitores e assim prestar um serviço. Não é uma notícia, é informação. No caso, informação útil. O antetítulo do vídeo diz ‘conselhos’, ou seja, o leitor sabe que ali encontrará não uma notícia, mas um conselho. Neste site-satélite, o leitor encontra conselhos sobre sexo, arrumação de armários, educação, aplicação de maquilhagem, receitas, etc.”.

“Não vemos diferença”, defende ainda Bárbara Reis, “entre recomendar um vinho no site-satélite Fugas, recomendar a compra de um CD duplo de ópera no Ípsilon ou mostrar como pôr um lenço na cabeça – uma acção que exige, aliás, alguma arte e capacidade de comunicação, como o vídeo prova. (…) É o Ípsilon, o nosso suplemento cultural, um ‘veículo de promoção comercial’, como diz o leitor sobre o Life&Style? Acreditamos que não. No entanto, todas as semanas, os leitores procuram no Ípsilon a opinião dos nossos especialistas sobre os últimos livros, discos e dvd acabados de chegar ao mercado. Na revista 2, que sai aos domingos, temos agora uma secção de 4 páginas nas quais fazemos recomendações. (…) São textos dos nossos críticos e jornalistas sobre livros, discos, concertos, etc., que ao lado incluem uma ficha com o nome, morada e preço dos produtos recomendados. Fazemos isso há anos. Numa perspectiva mais conservadora, isto pode também ser visto como ‘promoção comercial’. Não é essa a nossa visão”.

Não discutirei aqui as questões dirigidas à jornalista e editora (sim, Ana Brasil é jornalista e integra a lista dos detentores do título profissional). O Estatuto do Jornalista, referido pelo leitor, é um diploma legal que prevê as incompatibilidades para o exercício da profissão — à cabeça das quais “as funções de angariação, concepção ou apresentação de mensagens publicitárias” — e existe, para a análise dos casos de eventual incompatibilidade, um órgão próprio de regulação. Para a direcção do PÚBLICO, como ficou claro, esse é um problema que não se põe: o Life&Style é definido como um espaço editorial, e as peças aí publicadas como uma modalidade específica de jornalismo.

Para o que aqui importa, o debate sobre eventuais zonas de ambiguidade entre jornalismo e publicidade deve ser feito no quadro da relação de confiança dos leitores para com o jornal. Um pressuposto essencial dessa confiança é a presunção de total independência do jornal e dos seus jornalistas face a interesses comerciais ou outros. Cabe aos leitores julgar, à luz das regras que o PÚBLICO livremente assumiu para si próprio, se a recomendação de determinados produtos, num espaço próprio, é susceptível de afectar, pela forma ou pelo conteúdo, essa relação de confiança.

Peças como o vídeo do lenço e dos óculos não são jornalismo. São informação, que poderá interessar a muitos leitores, mas não obedecem às regras do jornalismo. O que não significa que não tenham lugar no jornal. Pelo contrário. Quando os critérios de qualidade, independência e espaço próprio estão assegurados, as recomendações sobre determinados produtos ou serviços podem até ser vistas como próprias de um jornal de referência. Embora possam funcionar também, objectivamente, como uma forma de promoção comercial, não se confundem com publicidade, que por definição é remunerada. Por isso é fundamental garantir — e isso cabe à direcção do jornal — que quem redige recomendações desse tipo não possa retirar do que escreve qualquer contrapartida ou benefício material ligado aos produtos ou marcas que recomenda.

Na minha perspectiva (talvez “conservadora”) há também uma distinção clara a fazer entre este género informativo híbrido do shopping e a crítica, certamente mais exigente, de objectos culturais — livros, filmes, espectáculos, mas também, num conceito mais amplo, restauração ou vinhos —, tal como é tradicionalmente acolhida na imprensa. Sugestões de compras são outra coisa, até porque são, por natureza, positivas.

A confiança dos leitores na independência dos critérios que devem presidir a tudo o que é publicado sob responsabilidade editorial — por oposição ao espaço vendido para fins comerciais — tem de assentar em regras claras de demarcação entre informação e publicidade, e elas estão definidas no Livro de Estilo do PÚBLICO. Como as aparências também contam, uma dessas regras diz que se deve evitar a inserção de publicidade a objectos ou acontecimentos nas mesmas áreas do jornal em que estes são tratados pela redacção.

Curiosamente, o vídeo referido por Firmino Monteiro esteve acompanhado, durante uma semana, por publicidade a uma marca de óculos (um anúncio paginado ao lado e outro a cobrir o próprio vídeo). A direcção do jornal informou-me de que não foi infringida a norma existente: a campanha publicitária, que só surgiu bastante tempo depois da publicação do vídeo, não era de nenhuma das marcas sugeridas na peça do Life&Style. Óculos publicitados ao lado de óculos aconselhados podem, ainda assim, ter confundido leitores menos atentos, recordando a importância de vigiar a aplicação, nem sempre cumprida, da regra da proximidade indesejada.

José Queirós

 

 

Documentação complementar

 

Carta do leitor Firmino Monteiro

A versatilidade do lenço e/ou a “versatilidade da editora”

(…) Não quero deixar de expressar a minha perplexidade por um facto ocorrido no nosso jornal no domingo [13 de Maio de 2012] e ainda em “exibição” na edição on-line, secção “Life&Style”. Apesar de ser leitor do Público desde a primeira hora e continuar a considerar o jornal indispensável no meu dia-a-dia, confesso que nunca tinha consultado a referida secção, talvez por tratar de questões que não fazem parte das minhas prioridades informativas. Mas, no domingo passado, a minha atenção foi atraída por uma nota na última página da edição impressa (…), que dizia algo do género (cito de cor): “A versatilidade do lenço…Aeditora do Life&Style mostra-lhe as quatro maneiras de usar um lenço”.
Embora nunca tivesse consultado a referida secção, nada tenho contra o estilo e muito menos contra a vida. Por isso, fui ver do que se tratava, pensando, lá no fundo da minha inocência,  que ia recordar ou aprender usos do velho lenço de assoar, que a minha mãe, há mais de quarenta anos, me obrigava a levar no bolso!
E aquilo de que suspeitei ao ler a nota da última página de domingo, acabou por se confirmar, para minha total perplexidade. A editora da referida secção, uma jovem in loco identificada como Ana Brasil, exibe, num vídeo de 3 minutos e 26 segundos de duração, os seus dotes de especialista em dar nós diferentes a um lenço na cabeça, assumindo, tal como prometia a nota, um visual diferente em cada uma das formas de colocar o lenço. Diferenças que são substancialmente acentuadas pelo uso de óculos de sol também diferentes em cada posição do lenço.
(…) Achei o resultado estético do exercício interessante, ainda que desiludido, por nada ter apreendido ou recordado sobre o velho lenço de assoar… A jovem Ana Brasil pareceu-me ter a life e o style adequados à performance. E daqui não viria mal ao mundo, seguramente. O que me deixou perplexo foi ela estar identificada como editora da secção. Será que o termo editora está aqui usado como é comummente aceite? Isto é, será que a jovem Ana Brasil é editora porque é jornalista? Ou o style desta secção dispensa jornalistas e editores e é feito por gente sensível às modas, mas insensível às normas éticas da profissão de jornalista? Mas se é assim, porque lhe chama o Público editora?
Tomemos, pois, as coisas pelo seu valor facial e partamos do princípio que num jornal como o Público, quando se identifica alguém como editora, é porque essa pessoa tem responsabilidades editoriais, logo é jornalista senior, com poderes delegados para tomar decisões de publicar ou não matérias informativas. Ora, assim sendo, a minha perplexidade leva-me a colocar as seguintes questões:
 1. Deve uma jornalista (ainda por cima editora) ser protagonista de uma exibição de produtos de moda (se ainda fosse algo didáctico sobre lenços de assoar fabricados pela industria portuguesa…)?
 2. Deve uma jornalista (ainda por cima editora) ser o sujeito de uma promoção de produtos comerciais ,no caso um lenço e quatro pares de óculos?
3. Pode uma jornalista (ainda por cima editora) aconselhar o uso de produtos comerciais cuja marca e preço aparecem por baixo do vídeo, tal como as lojas onde podem ser adquiridos?
4. Pode uma jornalista (ainda por cima editora) ser veículo de exibição pública de produtos comerciais cuja marca, preço e local de venda surgem colados a essa exibição sem incorrer na violação das normas por que se rege o estatuto do jornalista?
5. Pode uma jornalista (ainda por cima editora) manter a carteira profissional — assumindo que possui tal título — depois de ter promovido desta forma descarada produtos comerciais?
6. Pode um jornal como o Público ter uma jornalista (ainda por cima editora) a servir de veículo de promoção comercial sem, com esse gesto, espezinhar os princípios éticos e deontológicos da profissão de que se arroga respeitador e zelador?
(…) Talvez alguém queira dirigir uma das perguntas à Comissão da Carteira dos Jornalistas, inquirindo se a jovem Ana Brasil, sendo jornalista, pode fazer o que fez e manter o título profissional. Porque, na verdade, não vejo grande diferença entre esta atitude da secção Life&Style e aquelas outras de famosos jornalistas televisivos que, há uns bons anos, desataram a fazer anúncios publicitários a bancos e a detergentes. E, se bem me lembro, nessa altura, foi-lhes suspenso o título profissional. Quererá o Público, um jornal de referência, com reputação imaculada nesta matéria, ser protagonista de algo semelhante? Ou acharão os responsáveis do Público que um simples vídeo numa obscura (?) secção do on-line se pode eximir ao cumprimento das regras deontológicas que regulam a profissão de jornalista? Talvez não tão obscura como isso, porque afinal foi promovida na última página da edição impressa de domingo — uma página nobre de um dia nobre, presumo. E já agora, também seria interessante saber por que razão é que algum responsável editorial do jornal decidiu promover aquele vídeo particular na edição impressa e não qualquer outro das dezenas que se podem encontrar no on-line do Público. Justamente um vídeo onde se promovem produtos comerciais. Não acredito em bruxas, pero… Eis as razões pelas quais fiquei perplexo ao ver o referido vídeo (…).
23 de Maio de 2012 
Firmino A Souto Monteiro
Lisboa

 

Esclarecimento da directora do PÚBLICO, Bárbara Reis

Todos os domingos, na edição impressa do PÚBLICO, fazemos na contra-capa chamadas sobre conteúdos do nosso site. Em regra, destacamos temas dos chamados sites-satélite. O Life&Style é tudo menos uma secção obscura. Este mês, teve 300 mil visitas únicas e mais de três milhões de pageviews, um dos melhores números de sempre na sua curta vida (10 meses). Tem sete secções, uma delas, Moda. Ana Brasil é a editora do site, ou seja, é a responsável por todos os seus conteúdos. Como tantas editores de sites semelhantes em jornais de referência internacionais, Ana Brasil faz shoppings, ou seja, sugestões de compras. Este vídeo específico era no entanto mais do que isso. Era sobre como se pode criar quatro looks diferentes com um único lenço. Um vídeo prático que tem como objectivo aconselhar os leitores e assim prestar um serviço. Não é uma notícia, é informação. No caso, informação útil. O antetítulo do vídeo diz “conselhos”, ou seja, o leitor sabe que ali encontrará não uma notícia, mas um conselho. Neste site-satélite, o leitor encontra conselhos sobre sexo, arrumação de armários, educação, aplicação de maquilhagem, receitas, etc. Não vemos diferença entre recomendar um vinho no site-satélite Fugas, recomendar a compra de um CD duplo de ópera no Ípsilon ou mostrar como pôr um lenço na cabeça – uma acção que exige, aliás, alguma arte e capacidade de comunicação, como o vídeo prova. Há coisas que é melhor mostrar do que descrever. A internet também é um serviço, não apenas um espaço para ler notícias. É o Ípsilon, o nosso suplemento cultural, um “veículo de promoção comercial”, como diz o leitor sobre o Life&Style? Acreditamos que não. No entanto, todas as semanas, os leitores procuram no Ípsilon a opinião dos nossos especialistas sobre os últimos livros, discos e dvd acabados de chegar ao mercado. Na revista 2, que sai aos domingos, temos agora uma secção de 4 páginas nas quais fazemos recomendações. “Leia Isto”, “Veja Isto”, “Oiça Isto” e “Veja Isto”. São textos dos nossos críticos e jornalistas sobre livros, discos, concertos, etc., que ao lado incluem uma ficha com o nome, morada e preço dos produtos recomendados. Fazemos isso há anos. Numa perspectiva mais conservadora, isto pode também ser visto como “promoção comercial”. Não é essa a nossa visão.
1 de Junho de 2012
Bárbara Reis

 
Nova carta do leitor Firmino Monteiro 

(…) Peço desde já desculpa por insistir na questão que foi objecto da sua reflexão na edição de domingo, 3 de Junho de 2012, suscitada pela carta que lhe enviei sobre o vídeo da colocação do lenço na cabeça pela editora do Life&Style, que agradeço. Mesmo que entenda não regressar ao assunto (…), talvez a polémica em torno do tema possa ser útil aos leitores que consultam o seu blogue, independentemente de voltar ou não às páginas da edição impressa.
Lido e relido o artigo, queria confessar-lhe, com toda a sinceridade, alguma frustração da minha parte por me parecer que foi demasiado brando no juízo feito sobre o comportamento da editora do “site-satélite”. E já agora da defesa que desse comportamento faz a directora do jornal.
Compreendo perfeitamente que o essencial do problema está na seriedade e honestidade de procedimentos dos jornalistas e na relação de confiança que os leitores estabelecem com o seu jornal. Se compro o Público diariamente desde a fundação é porque confio naquilo que os seus jornalistas me dão e os tenho como sérios, honestos, independentes.
O meu ponto é, porém, outro. É saber – como pensei ter ficado claro na primeira carta – se uma jornalista pode ser ela própria, o VEÍCULO, a PROTAGONISTA, da promoção de um produto comercial, como é claramente o caso. Acredito sinceramente que a jornalista não retire qualquer vantagem pessoal disso, nem me passou pela cabeça que tal pudesse acontecer num jornal como o Público, mas a questão não é essa. A questão é que a condição de jornalista impõe restrições que me parecem incompatíveis com a exibição de produtos comerciais, como lembra no seu artigo.
Permita-me dois exemplos exteriores ao jornal. Há não muitos anos, a Liga de Futebol Profissional quis que os repórteres em trabalho nos estádios usassem uns coletes identificativos que tinham também o símbolo e a marca do patrocinador da competição. A ideia foi rejeitada, se bem me lembro, e inviabilizada.
Mais recentemente, um cabeleireiro que trata de dois “pivots” da SIC, salvo erro a Clara de Sousa e o Rodrigo Guedes de Carvalho, decidiu fazer uns cartazes promocionais (publicitários?) com fotos deles a serem penteados nas suas instalações e afixá-los na montra. Os dois jornalistas protestaram e os cartazes foram retirados.
Parece-me que, em ambos os casos, o que esteve em causa foi justamente a utilização de jornalistas como VEÍCULOS de promoção comercial, como PROTAGONISTAS dessa promoção, o que foi considerado inaceitável e irregular. Ora, confesso que não vejo diferença substancial entre estes dois casos e o da editora do Life&Style. Ou melhor, vejo uma diferença significativa: é que neste caso a exibição é voluntária, enquanto nos outros era uma tentativa de usurpação da imagem de terceiros.
Já vejo uma enorme diferença, isso sim, entre o vídeo em causa e as notas de recomendação de livros, discos, vinhos ou restaurantes, como assinala no seu artigo. Ao contrário da directora do jornal, que não vê diferença entre uma crítica a um livro do Lobo Antunes e um vídeo a promover o uso de um lenço e quatro óculos, eu gostaria apenas de lembrar que, independentemente até da distância que vai de um produto cultural a uma peça de vestuário, aquilo que o jornal publica sobre livros, discos, concertos, vinhos ou restaurantes traduz a opinião de alguém que é suposto perceber do assunto, que tem um discurso sobre o tema, que pode ser favorável ou não, mas cujo juízo de valor é justificado através de um texto mais racional ou mais emocional, mas inteligível.
Para transpormos a lógica do vídeo do Life&Style para os livros, era necessário filmar o jornalista deleitado a ler o livro numa bela poltrona de modo a que se visse bem o título e a editora, e que na sua cara de satisfação ficasse bem patente o quão fascinante era aquela leitura. Nada de palavras. O mesmo para os restaurantes: o jornalista a lambuzar-se pantagruelicamente num restaurante com direito a nome, morada e telefone para reservas, num desfile irresistível de gula e colesterol. Nada de palavras. Ou para os vinhos: o jornalista decilitrando copiosamente os néctares com rótulos ostensivos, num deleite turvado por taninos e afins. Nada de palavras. “Há coisas que é melhor mostrar do que descrever”, diria a directora, também ela deleitada com o alargamento do conceito de ”shopping”. E o que diria disto o saudoso David Lopes Ramos? Ele que tantas e tão sábias palavras escreveu sobre vinhos e restaurantes! Ele que circulava anonimamente para não ser privilegiado nos locais onde ia! Prestar-se-ia ele – ou aqueles que hoje escrevem sobre vinhos e/ou restaurantes – a fazer um vídeo como o do Life&Style? A resposta parece-me óbvia. David Lopes Ramos sabia que a forma também tem conteúdo, algo que a directora do Público ignora. 
E nesta ignorância reside “tout un programme”. O que vai da apreciação crítica à promoção acrítica, acéfala, de um produto. O que vai da lógica jornalística à lógica promocional/publicitária. A primeira é a função de um jornalista e/ou crítico especializado, a segunda está-lhe vedada por lei e sobretudo pela ética. É “informação útil”, argumenta a directora. É-o no mesmo sentido dos cartazes afixados nas montras das lojas a dizer “saldos” ou da indicação que há em qualquer hospital (e certamente na redacção do Público)  a indicar a saída de emergência. Mas não confundamos as coisas. Nem as mistifiquemos, porque para mostrar como se pode colocar um lenço de quatro formas diferentes não é preciso divulgar a marca do lenço, nem o preço, nem a loja onde se vende. Aliás, no mesmo site do Life&Style está um outro vídeo da editora a explicar como se arruma um armário de roupa sem qualquer referência comercial, sem a tal componente “shopping”, e nem por isso a “informação” é menos “útil”.
Posso, de resto, tranquilizar a directora do jornal, dizendo que a minha perspectiva “conservadora” é suficientemente ampla para aceitar uma rubrica tipo “shopping” num site como o “Life&Style”, mas insuficientemente aberta para achar que tal rubrica deve ser uma exibição promocional protagonizada pela própria editora. E lembro até que na extinta revista dominical “Pública” havia umas produções de moda que eram feitas por… modelos, não pela editora da revista ou por jornalistas da casa. Porque não foi adoptado em relação ao Life&Style o mesmo procedimento?
Bem sei que vivemos tempos de flexibilidade laboral e de “multi-tarefismo” e o Público não escapa à crise. Mas a crise não pode servir de pretexto, como tão bem tem alertado, para degradar a qualidade do jornal.
Escreve a directora que no Life&Style “o leitor encontra conselhos sobre sexo, arrumação de armários, educação, aplicação de maquilhagem, receitas, etc.”. Ora, se o protagonismo da editora do site for a regra, eu, que já a vi a promover lenços e óculos e a arrumar armários, também a irei ver a maquilhar-se, a cozinhar, a dar aulas e a praticar sexo? Só posso acreditar, porque a directora do jornal entende que “há coisas que é melhor mostrar do que descrever”. Saiba que concordo plenamente. desde que a jovem Ana Brasil abdique da sua função de editora/jornalista e passe a ser apenas a “special guest star” do site (…).
5 de Junho de 2012
Firmino Monteiro

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 

2 comentários a Quatro formas de usar um lenço

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