Nome, justiça e informação

(Crónica da edição de 26.02.12)

1. A identificação dos protagonistas de processos judiciais — as vítimas de crimes, mas também os que são acusados de os cometer — é um dos problemas mais discutidos no campo da deontologia jornalística. É um tema em que existem zonas de consenso, mas também questões de alguma complexidade, que devem continuar a ser debatidas, sem prejuízo do esforço de fixação de regras orientadoras. 

Uma notícia recente, divulgada de forma diferente nas duas plataformas do PÚBLICO (o jornal impresso e a edição para a Internet), provocou objecções e dúvidas de leitores, relacionadas com a identificação, tanto da vítima como do agressor, num caso de crime de natureza sexual. Esse caso, que muitos recordarão pela repercussão pública que teve e pela polémica que gerou ao longo das várias etapas do processo judicial a que deu origem, levou a tribunal um médico psiquiatra acusado de ter forçado uma doente a ter relações sexuais contra a sua vontade. Inicialmente condenado na primeira instância a uma pena de prisão (suspensa) e ao pagamento de 30 mil euros de indemnização, o psiquiatra viria a ser absolvido pela Relação do Porto, numa sentença muito criticada por contrariar noções comuns sobre violência sexual e relações sem consentimento.

O processo chegou depois ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que não aceitou revê-lo no plano da responsabilidade penal, explicando, segundo foi noticiado, que “não há recurso das decisões absolutórias proferidas em recurso pelas relações”. A sua decisão quanto ao recurso no plano cível, condenando o médico a pagar 100 mil euros à vítima, não deixou dúvidas, no entanto, quanto à convicção dos juízes sobre a culpabilidade deste. Foi dada como provada a existência de coerção, no caso exercida sobre uma mulher fragilizada, em situação depressiva e até fisicamente limitada por se encontrar, à época, em estado final de gravidez.

Foi esta decisão do STJ que o PÚBLICO divulgou, primeiro no passado dia 16, na edição on line, através de uma notícia distribuída pela agência Lusa, e com maior detalhe no dia seguinte, no jornal impresso, em texto assinado pela jornalista Ana Cristina Pereira. Na primeira notícia, tanto a vítima como o médico agora condenado eram identificados pelos seus nomes completos. Na segunda, foi omitido o nome da vítima, e o psiquiatra surgia identificado apenas pelo primeiro nome e pelas iniciais do último apelido. Foram estas opções, e a patente divergência de critérios entre a edição on line e o jornal em papel, que provocaram o protesto ou a perplexidade de alguns leitores.

Quanto à identificação da vítima, não há lugar a dúvidas: tratou-se de um erro, e de um erro grave. A norma deontológica que impõe aos jornalistas que não identifiquem, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes sexuais, é de fácil compreensão. Visa impedir que ao abuso cometido sobre a vítima se some outro abuso, com a desnecessária, e muitas vezes estigmatizante, exposição pública do seu nome. É uma regra consensual, de que só se afasta algum jornalismo sem escrúpulos.

O nome completo da vítima constava de uma notícia da Lusa, que o PÚBLICO colocou em linha às 17h43 do dia 16. Contra essa passagem do texto protestou de imediato o leitor Raul Silva, através da caixa de comentários da edição na Internet, e o erro viria a ser corrigido ainda nesse dia. Luciano Alvarez, editor do PÚBLICO Online, diz ter sido “alertado para o erro, por colegas, minutos depois da publicação” e acrescenta que este “foi imediatamente corrigido”, tendo sido “retirado o nome da vítima”.

Mais uma vez, a pressa em divulgar, sem a reflexão necessária, uma notícia de agência — e, provavelmente, a falta de coordenação com quem se encontrava a tratar o tema para o jornal do dia seguinte — tinha provocado estragos. É certo que o nome foi retirado, mas o mal estava feito. Ninguém pode garantir que, uma vez colocada na Internet, uma informação não seja reproduzida.

Se é verdade que neste caso os responsáveis pelo Público Online reagiram rapidamente, fizeram-no cometendo outro erro: não assinalaram a alteração efectuada, o que só foi feito há poucos dias. Ora não só a sinalização de alterações e correcções às notícias on line deve ser obrigatória — é uma questão de honestidade profissional e de respeito pelos leitores que tomaram conhecimento do texto original —, como o desleixo no cumprimento desta regra pode provocar equívocos lamentáveis. Foi o que sucedeu com o leitor Raul Silva, que, tendo justamente criticado a publicação da identidade da vítima, se viu acusado por outros comentadores de estar a defender a omissão do nome do agressor. Tratava-se, como se perceberá, de leitores que viram o seu comentário quando a notícia já fora corrigida e o único nome dela constante passara a ser o do psiquiatra, sem que no entanto essa correcção estivesse assinalada e explicada.

 

2. Problema diferente levantou-se com a notícia, rigorosa e esclarecedora, assinada por Ana Cristina Pereira na edição em papel do dia 17. Nesse texto, o psiquiatra julgado pelo STJ foi identificado de forma encoberta (primeiro nome e iniciais dos apelidos), em contraste com o que sucedera no Público Online. Tal solução suscitou, naturalmente, várias dúvidas: sobre a diferença de critério entre as duas edições, sobre a utilidade de uma fórmula que parece querer fugir à escolha entre publicar ou omitir a identificação e, finalmente, sobre a questão de fundo, a de saber se deve ou não ser dado a conhecer o nome de alguém que foi condenado em tribunal.

Tiago Luz Pedro, editor da secção Portugal, explica que a solução adoptada resultou do compromisso a que chegou com a autora da peça. Esta optara inicialmente por não identificar o psiquiatra, argumentando com o facto de que o jornal o não fizera em anteriores notícias sobre o caso e “com a sua própria convicção profissional, que só em casos muito excepcionais admite a identificação de visados em processos judiciais”. Uma convicção que a jornalista, que tem publicado diversos trabalhos resultantes do diálogo com pessoas que cumpriram ou estão a cumprir penas por crimes cometidos, assume nestes termos: “No mundo ideal, a pessoa é condenada a uma pena, cumpre-a, e acabou. No mundo real, ter cometido um crime e ter sido preso por isso é um motor de estigma. Fazer jornalismo de responsabilidade é, também, perceber isto”.

Para o editor, pelo contrário, a identificação do psiquiatra não oferecia dúvidas: “Não só era um médico que exercia funções públicas (de que foi suspenso antes mesmo da condenação judicial) como o caso teve um eco profundo na sociedade, em particular depois do polémico acórdão da Relação que o absolveu da condenação na primeira instância e das diferentes noções de violência sexual que aí se esgrimiam”. A solução aparentemente salomónica a que se chegou — e que Tiago Luz Pedro diz ter admitido “apenas como a excepção que confirma a regra, por respeito à ‘cultura’ de uma jornalista exemplar no tratamento dos temas que lhe competem” — resultou, na prática, na omissão do nome do médico.

Por mim, julgo que o recurso a iniciais, à omissão de apelidos ou a nomes fictícios não faz sentido nas notícias sobre processos judiciais, devendo ser reservado (com a devida explicação aos leitores) para os trabalhos jornalísticos, geralmente reportagens, em que contribui para personalizar protagonistas que não podem ou não devem ser identificados. O compromisso a que neste caso se chegou na redacção do PÚBLICO deve desejavelmente dar lugar ao aprofundamento do debate sobre a identificação ou não das pessoas condenadas pela justiça.

A legitimidade dessa identificação é indiscutível. A realização da justiça é um acto público. A sentença condenatória de um tribunal tem funções de reprovação social, de prevenção do crime e até de esclarecimento factual que integram o direito dos cidadãos à informação. Para além desse interesse público genérico, pode existir em várias situações um interesse público específico, geralmente relacionado com a segurança. Existirá no caso vertente se concordarmos com o que escreveu uma leitora nos comentários à notícia: “Parece-me que será avisado que conheçamos o nome deste médico para não irmos ao engano ao seu consultório”.

Esse interesse público deve, no entanto, ser cuidadosamente ponderado em cada situação concreta, para não ser confundido com curiosidade mórbida ou voyeurismo. É um facto que a publicitação, através da comunicação social, da identidade de alguém que foi condenado, especialmente por certo tipo de crimes, irá estigmatizar essa pessoa para além do tempo de cumprimento da pena, podendo até ameaçar a sua segurança. A complicar uma avaliação neste caso, deve ter-se em conta que pode não ser óbvio o entendimento de que cessou o direito à presunção de inocência do médico sancionado: afinal, gostemos ou não, de acordo com as leis em vigor, ele foi absolvido das acusações criminais.

Concluo por isso com uma nota de dúvida e um apelo ao aprofundamento do debate. A imprensa tem toda a legitimidade para identificar quem foi condenado pela justiça, e por maioria de razão quando a sua notoriedade ou responsabilidade social, e ainda a natureza do crime ou o alarme causado, assim o aconselham. Saber se deve fazê-lo implica, no entanto, em cada caso concreto, uma ponderação de circunstâncias e valores em que sempre influirão diferenças de sensibilidade no plano ético. Mais do que na aplicação de regras, que são necessárias, é nesse exercício que se afirma a responsabilidade editorial.

José Queirós

 

 

Documentação complementar

 

Perguntas dirigidas aos editores do Público Online e da secção Portugal e à jornalista Ana Cristina Pereira

Recebi uma mensagem de um leitor que protesta contra o facto de uma notícia publicada a 16.02.12 na edição on line (“Supremo condenou psiquiatra a pagamento de 100 mil euros a paciente“) referir o nome da vítima de um caso de violação. Por outro lado, a identificação do psiquiatra condenado pelo Supremo é feita por extenso nessa peça saída no Público Online, mas apenas com o primeiro nome e iniciais dos apelidos na peça sobre o mesmo assunto publicada a17.02, no jornal impresso (pág.4), o que parece indicar a existência de critérios diferentes entre os responsáveis pelas duas edições do jornal.
O que venho perguntar é o seguinte:
1) Confirmam que o nome da vítima foi publicado na edição on line? Porquê?
2) Se foi publicado e posteriormente retirado, por que motivo não foi assinalada essa alteração?
3) Num caso como este, consideram (e porquê) que o indivíduo condenado:  a) não deve ser identificado?; b) deve ser identificado pelas iniciais do nome?; c) deve ser plenamente identificado?
4) Existe alguma orientação interna a este respeito? Como se explica a divergência de critérios entre a edição impressa e a edição on line?
17 de Fevereiro de 2912
J.Q.

 

Resposta de Luciano Alvarez, editor do Público Online

1)  Sim. Foi publicada a notícia da Lusa na íntegra, que incluía o nome da vítima. Alertado para o erro, por colegas, minutos depois da publicação, este foi imediatamente corrigido. Ou seja, foi retirado o nome da vítima, muito antes de a própria Lusa ter feito a sua correcção.
2) Por erro. Só agora, perante a sua pergunta, nos apercebemos do erro. Embora já esteja fora das notícias destacadas, fizemos a correcção.
3) Depois de condenado, pode ser identificado.
25 de Fevereiro de 2012
Luciano Alvarez

 

Resposta da jornalista Ana Cristina Pereira

1 e 2) Não sou autora da peça on-line. Não tenho qualquer responsabilidade sobre a publicação dessa peça. Sei que o código deontológico e o estatuto de jornalistas são muito claros no que concerne à não identificação de vítimas de crimes sexuais. Sou autora do texto que saiu na edição de papel.  Nesse nada identifica a vítima.
3) O que se exige é que o jornalista salvaguarde a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado. Aí não ponho nome ou ponho apenas um nome próprio e/ou iniciais. Neste caso concreto já não há recurso possível. Só que este caso concreto está longe ser simples: o psiquiatra fora absolvido a nível penal e é condenado a nível cível.
Devo ainda assim dizer que costumo estender aquela prática. Quando entrevisto condenados por algum crime, como tantas vezes acontece em cadeias, falo com as pessoas sobre esta questão e normalmente querem ser identificadas só com nome próprio. Eu respeito essa vontade. No mundo ideal, a pessoa é condenada a uma pena, cumpre-a, e acabou. No mundo real, ter cometido um crime e ter sido preso por isso é um motor de estigma. Fazer jornalismo de responsabilidade é, também, perceber isto.
17 de Fevereiro de 2012
Ana Cristina Pereira

 

Resposta de Tiago Luz Pedro, editor da secção Portugal

1 e 2) Fui o responsável pela edição em papel da notícia (…).Por não ter tido qualquer intervenção nos conteúdos publicados online, dispenso-me obviamente de comentar essa parte.
3 e 4)Não há critérios divergentes na identificação de suspeitos, acusados ou condenados em processos judiciais entre as duas edições do jornal (papel e online). Embora o Livro de Estilo do PÚBLICO deixe aos jornalistas e editores uma ampla margem de manobra a esse respeito (só não se identificam vítimas de crimes sexuais e menores), o critério tem sido sempre o da salvaguarda do bom nome das pessoas e o respeito pelo direito à presunção de inocência dos visados, independentemente de virem ou não identificados nas notícias que sobre eles se escrevem.
Vários pressupostos podem justificar a identificação de pessoas alvo de inquérito judicial: a sua notoriedade, o facto de exercerem cargos públicos e/ou com relevância social, a repercussão mediática dos casos e o seu potencial causador de alarme social. Por regra distingue-se também entre as diferentes fases de um processo (um suspeito ainda não foi acusado e muito menos condenado), mas isso pouco importa para o que aqui se pretende discutir.
No caso do psiquiatra do Porto, a sua identificação não me ofereceu nunca quaisquer dúvidas. Não só era um médico que exercia funções públicas (de que foi suspenso antes mesmo da condenação judicial) como o caso teve um eco profundo na sociedade, em particular depois do polémico acórdão da Relação que o absolveu da condenação na primeira instância e das diferentes noções de violência sexual que aí se esgrimiam.
A opção de identificá-lo apenas pelo nome próprio, remetendo o apelido para iniciais, resulta de uma solução de compromisso a que chegámos eu e a jornalista autora da peça. A sua primeira opção tinha sido pura e simplesmente não identificá-lo, com o argumento de que o não tínhamos feito nas duas vezes anteriores em que escrevemos sobre o caso e com a sua própria convicção profissional, que só em casos muito excepcionais admite a identificação de visados em processos judiciais.
Há duas “atenuantes” que importa considerar neste caso e que em parte ajudam a justificar as opções tomadas: por um lado, a jornalista em causa não é autora das peças anteriores e só o foi neste caso por ter sido ela a descobrir o acórdão do Supremo que era a razão de ser da notícia (as duas jornalistas que antes tinham escrito sobre o caso estavam também ausentes nesse dia); por outro, trata-se de alguém cujo percurso profissional se tem cruzado frequentes vezes com processos judiciais, mas precisamente o tipo de processos que estão na margem de fora daquilo que deontologicamente estamos autorizados a revelar no que aos intervenientes diz respeito. Refiro-me, em particular, aos casos de justiça de menores e de violência doméstica, duas “atribuições” na área da Justiça que no jornal têm sido da sua quase exclusiva responsabilidade. Entendi, por isso, como boa a relutância da jornalista na identificação completa do médico, que atribuo em parte a defeito (ou virtude) profissional.
Este foi talvez o primeiro caso em que anuí como editor na opção pela identificação apenas com as iniciais de alguém que é condenado na justiça e que estou em crer preenche os requisitos para a sua nomeação. Sou da opinião que um suspeito ou se identifica ou não se identifica, de acordo com os critérios acima expostos e obedecendo a uma ponderação que é sempre feita caso a caso. Admiti-o apenas como a excepção que confirma a regra, por respeito à “cultura” de uma jornalista exemplar no tratamento dos temas que lhe competem e que foi também ela sensível aos argumentos que expus na defesa da identificação do visado.
De resto, e seguindo a mesma linha de raciocínio, importa dizer que discordo da opção de não se ter identificado o mesmo médico psiquiatra nas fases anteriores do processo. O facto de não ter intervindo nesses momentos (e de só mais tarde me ter apercebido dessa opção) deixa-me pouca margem para me alongar nesse debate.
24 de Fevereiro de 2012
Tiago Luz Pedro

 

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